Novas tecnologias e direito probatório: aspectos atuais sobre provas digitais

Novas tecnologias e direito probatório: aspectos atuais sobre provas digitais

Publicado em 9 de maio de 2022
Por Raphael Miziara

“Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens.” Com esse assertivo pensamento, o canadense Marshall McLuhan — um dos principais teóricos da comunicação e criador do termo “aldeia global” [1] — talvez não tivesse dimensão, à época, do tamanho impacto social que a ferramenta internet hoje causa nas relações sociais e, claro, processuais.

A conexão à rede mundial de computadores permite que um indivíduo, localizado em um determinado lugar do globo terrestre, possa acessar sites hospedados em diferentes locais do mundo. Informações e oportunidades oriundas dos mais diversos e variados países podem ser acessadas em segundos, ao mesmo tempo e por diferentes pessoas.

O mundo atual, em boa medida, constitui-se em uma realidade sem fronteiras físicas, no qual a internet relativizou os limites geográficos, provocando uma verdadeira desestruturação do espaço e, muitas vezes, do próprio tempo. A interconexão entre porções descontínuas do espaço terrestre institui uma nova categoria espacial, comumente denominada de ciberespaço. A internet conferiu ao ser humano o dom da ubiquidade virtual.

No chamado ciberespaço é possível que um ato, praticado em determinado Estado, irradie efeitos sobre o território de outro. Basta imaginar uma postagem ofensiva publicada por um indivíduo situado na França, em um blog hospedado em servidor situado na Austrália, que atinja a honra de um cidadão residente e domiciliado no Brasil.

Em hipóteses como a exemplificada surgem os chamados conflitos espaço-normativos e instaura-se certa controvérsia acerca da lei material aplicável para solução do caso. Mas, não é só. Os debates passam pelo próprio instituto da jurisdição e da soberania, questionando-se qual é o Estado com poderes para solucionar tais demandas.

A sociedade digital é fruto da 4ª Revolução Industrial, caracterizada pela escala do impacto e pela velocidade das mudanças, fazendo com que as transformações atuais na sociedade sejam diferentes das provocadas por qualquer outra evolução industrial da história. Klaus Schwab afirma que três razões sustentam a ideia de uma 4ª Revolução: a) a velocidade das mudanças; b) a amplitude e profundidade; e, por fim, c) o impacto sistêmico [2].

O direito não está imune a tais mudanças. Ao revés, o direito e o próprio sistema de justiça foi e está sendo substancialmente impactado pelas tecnologias advindas da Revolução Tecnológica. A nova realidade social, caracteristicamente digital, expõe progressivamente a insuficiência dos tradicionais métodos jurídicos de regulação, tanto no campo material, como na seara processual.

Nesse cenário, se o Direito tem por principal missão regular as relações sociais e, sendo estas últimas cada vez mais virtuais ou digitais, é imperioso que as normas jurídicas acompanhem tal mudança e passem a dialogar em maior medida com as ciências computacionais.

A aumento exponencial na produção de vestígios digitais está relacionada com o fenômeno do big data, ou seja, pela explosão dos dados. A sociedade em rede está cada vez mais interconectada e a produção de dados atinge proporções cada vez maiores. Fala-se nos três “Vs” do fenômeno big data: variedade, volume e velocidade. O altíssimo volume de dados, gerado em variedade e velocidade cada vez maiores, permite criar modelos e atingir altos níveis de precisão por algoritmos, por exemplo.

Para se ter ideia da dimensão do afirmado, interessante observar que no Brasil, por exemplo, a população no ano de 2016 era de 206 milhões de habitantes e os dispositivos conectáveis à internet somavam 244 milhões. Cinco anos depois, já no ano de 2021, a população teve um tímido crescimento para 213 milhões de habitantes [3], enquanto os dispositivos conectáveis à rede mundial de computadores teve um aumento exponencial para 424 milhões, conforme dados extraídos da 32ª pesquisa anual do uso de TI da FGVcia [4]. Este fenômeno de capilaridade tecnológica é chamado de computação ubíqua ou pervasiva.

O contexto acima explica bem as razões pelas quais o tema das provas digitais “viralizou” no meio jurídico em tempos mais recentes. Há uma explicação: quanto maior o número de dispositivos conectáveis à internet, maior será a atividade digital das pessoas. Quanto maior a atividade digital, mais fatos sociais ocorrerão em ambiente virtual. E, se há um aumento dos fatos que acontecem em ambiente virtual, é natural que os meios de provas digitais ganhem destaque e importância. Isso se dá porque na maioria dos casos, embora isso nem sempre ocorra, os fatos ocorridos em ambiente virtual são demonstrados por meios de provas digitais.

Praticamente tudo o que se faz em ambiente virtual deixa rastros ou “pegadas” digitais, constituindo-se em indícios ou meios de provas digitais. E, notoriamente, existem yottabytes de dados jogados na internet a cada instante [5]. Veja-se o exemplo das redes sociais. No Brasil, cada pessoa tem em média nove contas em redes sociais, o que está acima da média mundial, que é de oito contas por pessoa. Essas contas consomem no mundo duas horas e 22 minutos por dia, em média. Esse uso cresce para três horas entre os jovens de 16 a 24 anos. Na imagem abaixo pode-se notar que, no Brasil, a média de três horas e 41 minutos de uso diário em redes sociais sobe para quatro horas e 14 minutos para jovens de 16 a 24 anos de idade, valor que só perde no mundo para as Filipinas, país na qual os jovens usam as redes sociais em média quatro horas e 27 minutos por dia [6].

Mas, não é só nas redes sociais que se produzem e coletam vestígios digitais. Tudo que de um modo ou de outro está conectado à rede deixa “pegadas” digitais. Cite-se, por exemplo, as tecnologias vestíveis e as tecnologias implantáveis, as cidades inteligentes, geladeiras inteligentes, carros autônomos, impressoras etc. Atualmente, até fraldas [7] tornaram-se “inteligentes” e entraram no extenso rol da chamada Internet das Coisas. Todos esses objetos, e tantos outros, produzem dados que podem ser utilizados em processos judiciais.

Como se vê, o desenvolvimento das novas tecnologias se dá em ritmo e em volume exponenciais, sobretudo as ligadas à inteligência artificial. Tais mudanças seguem acarretando profundas modificações no processamento de informações na sociedade. E, não poderia ser diferente, as novas tecnologias de comunicação e informação impactam o Poder Judiciário e o processo das mais diferentes formas. O impacto é tão profundo que a doutrina chama o fenômeno de “virada tecnológica no direito processual” [8]. Trata-se, sem dúvida, de um novo paradigma.

Especificamente no que toca ao objeto do presente estudo, não é demais afirmar que a tradicional teoria das provas, doutrinária e normativamente, precisa ser repensada para o enfrentamento da nova realidade. Boa parte do que até hoje se desenvolveu em matéria de direito probatório está tradicionalmente atrelado a uma sociedade analógica, com fronteiras territoriais geográficas e físicas bem delimitadas, realidade cada vez mais distante.

A ausência de disciplina legal sobre provas digitais já demonstra, por si, a séria insuficiência no trato da temática no Brasil. A despeito de todo o avanço tecnológico, muito pouco se evoluiu no país na disciplina das provas digitais e dos meios de obtenção de prova relacionados à tecnologia e à internet. As poucas normas existentes são insuficientes para lidar com a complexidade das questões que surgem em tordo do crescente uso da tecnologia na produção de provas. Este estado de anomia vem sendo preenchido por decisões judiciais contraditórias e pequena parcela de casos chegam a ser tratados em instâncias superiores.

Quando se pensa em direito probatório e tecnologia percebe-se que esta última inflexiona o primeiro pelo menos de duas maneiras, como bem observa a doutrina. A tecnologia está presente não apenas no modo de se produzir ou colher a prova (como se dá, por exemplo, na audiência realizada por vídeo conferência, na utilização do PJe ou mesmo na documentação de atos processuais realizados digitalmente), mas também quando a ela — a tecnologia — é o próprio elemento ou ferramenta que dá suporte à fonte de prova [9]. É neste último sentido que se fala em provas digitais.

Os avanços tecnológicos, não se nega, proporcionam novas possibilidades de concretização de direitos fundamentais e contribuem em muito para o direito processual, todavia, também suscitam novos riscos e preocupações. Com efeito, o intenso fluxo virtual de dados propiciado pela internet desafia as seculares e tradicionais normas sobre direito probatório. Um dos maiores desafios colocados hoje à produção de provas digitais reside na compatibilização entre a busca da verdade processual e os direitos fundamentais das partes.

No direito processual do trabalho, há outra situação preocupante: a exclusão digital de muitos dos atores que comumente comparecem perante o Poder Judiciário trabalhista, o que pode dificultar sobremaneira a produção das provas pelas partes. O direito fundamental à prova é uma das manifestações do acesso à ordem jurídica justa. Contudo, não basta abrir as portas da Justiça, é indispensável que elas estejam ao alcance de todos. Por isso, a hipossuficiência técnica é uma realidade e não pode ser desconsiderada quando se fala na utilização de novas tecnologias no sistema de justiça, tornando necessário averiguar os limites dos poderes do juiz na produção das provas digitais (artigo 765 da CLT), bem como do princípio da cooperação processual (artigo 5º do CPC).

Considerando que os espaços digitais em geral são controlados por agentes econômicos dotados de alta capacidade de coleta, armazenamento e processamento de dados pessoais, a intensificação do fluxo comunicacional na internet aumenta as possibilidades de desigualdade processual, especialmente no direito processual do trabalho.

Outro ponto de discussão diz respeito ao possível desprestígio da prova oral a partir do avanço crescente utilização de instrumentos tecnológicos para a prova judiciária. Neste ponto, é preciso discutir o valor probante da prova digital e saber até que ponto a prova oral deve ser ou não levada em conta para confronto e valoração.

Ao tratar dos avanços tecnológicos e sua repercussão sobre o sistema probatório, Paulo Osternack Amaral afirma que os avanços tecnológicos não possuem apenas virtudes e que a rápida difusão dos meios de comunicação trouxe consigo uma série de incertezas, especialmente quanto à segurança da transmissão das informações. Com razão, afirma o autor que tais incertezas impactam diretamente na esfera jurídica. Há dúvidas em relação à integridade e à autoria de documentos firmados em meio eletrônico. As informações mantidas ou transmitidas por meio digital ainda geram desconfiança quanto à sua inalterabilidade e sigilo [10].

Por sua vez, ao discorrer sobre as novas tendências em processo e tecnologia, Antonio do Passo Cabral percebe que a crescente utilização de instrumentos tecnológicos para a prova judiciária provocou uma guinada no objeto das discussões sobre a prova. Afirma que enquanto outrora as partes discutiam se o fato probando em si mesmo ocorrera ou não, diante de certas provas digitais (por exemplo, imagens de alta resolução e dados precisos) que mostram onde a pessoa estava ou por onde passou, fica cada vez mais improvável questionar a ocorrência de certos fatos [11].

Nesse contexto, as partes passaram então a direcionar seus esforços ao debate a respeito dos aspectos da produção, armazenamento e integridade das provas digitais. Por isso, afirma-se que cresce em importância, de um lado, analisar o procedimento de produção da prova, especialmente quando produzida por entes privados. E, de outro lado, indagar a respeito da integridade dos elementos de prova colhidos, cuidando para que os registros não sejam adulterados (com inserção de dados falsos, do rosto de pessoas que nunca estiveram naquele local etc.). É aqui que se fala em investigar a cadeia de custódia da prova, perquirindo o caminho da produção à juntada da prova em juízo [12].

Dentro desse movimento de alteração do debate sobre a prova no processo fala-se em metaprova (“meta-evidence”), que seria a prova produzida sobre a própria prova, seu método de produção e armazenamento [13]. No direito americano, a meta prova também é chamada de “ancillary evidence” ou evidência ancilar, no sentido de auxiliar. Um exemplo de meta prova é o chamado carimbo de tempo ou “timestamp”, que atesta o exato horário em que a prova foi coletada.

Não se trata de um debate apenas teórico, uma vez que abrange conflitos de ordem prática, cuja resolução e desdobramentos terão impacto decisivo sobre o presente e o futuro do que até hoje se pensa e pratica em relação à produção de provas.

[1] McLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man. New York: Mentor Press, 1964. p. 103.

[2] SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 13.

[3] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html>. Acesso em 20/04/2022.

[4] 27ª pesquisa anual do uso de TI da FGVcia. Disponível em: <https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/pesquisa-anual-uso-ti> Acesso em 20/04/2022.

[5] O yottabyte é a maior unidade de medida de bytes e equivale a 10 elevado a 24 bytes. É difícil compreender mentalmente o tamanho do volume dados. Mas, saiba que são valores absurdamente altos.

[6] 27ª pesquisa anual do uso de TI da FGVcia. Disponível em: <https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/pesquisa-anual-uso-ti> Acesso em 20/04/2022.

[7] Uma fralda inteligente é uma roupa íntima conveniente com um sensor RFID que alerta os pais ou o responsável quando é hora de trocar o bebê ou quem quer que esteja fazendo uso da fralda. Elas funcionam a partir de minúsculo sensor RFID que detecta a umidade na fralda e, em seguida, envia um sinal para um receptor próximo, que então chega celular dos responsáveis por meio de um alerta. O sensor, desenvolvido por pesquisadores do MIT, não engorda a fralda. É simplesmente embutido no hidrogel encontrado nas fraldas descartáveis. O hidrogel se expande quando a fralda é molhada e dispara uma etiqueta para enviar sinais ao leitor RFID em um raio de um metro. A fralda vai mais além, rastreando não apenas a umidade, mas também os padrões de sono do bebê. Tudo isso sem o uso de baterias.

[8] Sobre os impactos das novas tecnologias no direito processual, em especial sobre a chamada “virada tecnológica no direito processual”, recomenda-se as produções do professor mineiro Dierle Nunes, sem dúvidas um dos maiores processualistas da nossa geração e importante estudioso das interconexões entre tecnologia e processo.

[9] LEONEL, Ricardo de Barros. Provas, meios eletrônicos e garantias constitucionais: reflexões iniciais. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos et al. Direito, Processo e Tecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, edição eletrônica.

[10] AMARAL, Paulo Osternack. Provas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, edição eletrônica.

[11] CABRAL, Antonio do Passo. Processo e tecnologia: novas tendências. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos et al. (coord.) Direito, Processo e Tecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, edição eletrônica.

[12] Idem.

[13] Idem.

Fonte: Consultor Jurídico
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