“O conceito de trabalho digno passa por metamorfoses”, afirma Peduzzi

“O conceito de trabalho digno passa por metamorfoses”, afirma Peduzzi

Publicado em 15 de março de 2021

“O conceito de trabalho digno passa por metamorfoses.” A afirmação é da presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministra Maria Cristina Peduzzi, ao falar sobre uma maior precarização das relações de trabalho por conta da epidemia de Covid-19. Em entrevista ao Anuário da Justiça, destacou que a grande preocupação hoje não é o emprego, mas sim o trabalho digno e “a garantia de um patamar civilizatório mínimo de direitos aos trabalhadores que estão engajados numa nova forma de prestar serviços”.

Um dos desafios da Justiça será julgar os casos decorrentes dessa nova relação de trabalho, como são as situações envolvendo os motoristas de aplicativo. Peduzzi afirma que a Justiça está preparada e garante que a competência é da Justiça trabalhista. “A emenda 45 foi muito clara a respeito da competência da Justiça do Trabalho para julgar não só a relação, conflitos que surjam de relações de emprego, que é aquela regida pela CLT, como relações de trabalho”, explica. Ela afirma que, apesar de duas turmas do TST terem julgado não haver vínculo entre o motorista e a empresa, ainda assim “há uma relação autônoma que está submetida à jurisdição trabalhista”.

Sobre o respeito à jurisprudência do TST pelas instâncias inferiores, a ministra destaca a importância de o sistema de precedentes ser seguido. Ela explica que esse sistema prevê uma possibilidade de se rediscutir a questão quando, no caso concreto, há uma particularidade. No entanto, Peduzzi diz que um dos problemas é que há uma cultura de distinção ordinária do que seria extraordinário. “O reconhecimento dessa distinção deve ser excepcionalíssima e não a regra”, diz. “Se for estabelecido como regra, não será aplicado o precedente, porque sempre será descoberta uma distinção naquele caso concreto”, comentou.

Peduzzi é a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior do Trabalho. Iniciou a gestão em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, o que trouxe diversos desafios à sua atuação. Para evitar a transmissão do vírus, houve investimentos na área tecnológica e a imediata suspensão de audiências presenciais para telepresenciais.

Apesar de defender mais o modelo presencial, diz acreditar que o sistema por videoconferência pode permanecer após a pandemia nos casos em que não houver sustentação oral. “Não tem ocorrido qualquer dificuldade. Pelo contrário, os advogados têm economizado, porque muitos não vinham a Brasília, tinham que contratar um advogado”, afirmou. “Acho que veio para ficar, não totalmente, superada essa fase, mas, de alguma forma, essa economia que foi produzida de tempo, de dinheiro, dificilmente vai ser eliminada”, disse.

Confira abaixo a entrevista:

ConJur — A gestão da senhora se iniciou no ano passado, quando veio a pandemia. Como avalia diante desse quadro da emergência sanitária?
Cristina Peduzzi — Esse imprevisto demandou ações rápidas, emergenciais, para superar três desafios que se antepuseram aos previstos: preservar a saúde de magistrados, servidores, colaboradores e também de membros do Ministério Público, advogados, jurisdicionados, de todos que atuam no sistema de Justiça; garantir a prestação jurisdicional; e formular uma política concreta para vencer essas dificuldades. Tivemos êxito nesses três aspectos, porque rapidamente instituímos as sessões telepresenciais e garantimos meios necessários para que o trabalho continuasse sendo realizado por meio remoto. Conseguimos isso graças a um investimento na área tecnológica.

ConJur — Como foi esse investimento na área tecnológica?
Peduzzi —Com as sessões e as audiências por meio de videoconferência, economizamos recursos, aumentamos a produtividade à razão de 6,3% a mais no número de processos julgados, se comparado com o ano de 2019, e também implementamos novos projetos com a Secretaria Institucional de Segurança com o sistema de governança institucional, com grupos de negócios do Processo Judicial Eletrônico que vêm constantemente aprimorando as nossas ferramentas tecnológicas. Criamos um módulo de triagem virtual no sistema Bem-te-vi, que é o nosso mecanismo de inteligência artificial, e evoluímos também criando comissão para tratar da Lei Geral de Proteção de Dados do tribunal. Como resultado de um esforço coletivo, fomos premiados, no final do ano de 2020, com o selo diamante outorgado pelo Conselho Nacional de Justiça.

ConJur — Quais outros projetos estão sendo desenvolvidos para a Justiça do Trabalho?
Peduzzi — Estamos concluindo o procedimento de remoção de nomeação de todos os candidatos aprovados no concurso nacional para preencher os cargos vagos na Justiça do Trabalho. Também estamos desenvolvendo o projeto Provas Digitais, que busca capacitar servidores e o próprio juízo para obter e analisar provas por meio digital nos processos trabalhistas. Com isso, vamos eliminar, dependendo da matéria, a produção de prova testemunhal. Hoje não tem sentido produzir prova testemunhal, por exemplo, para comprovar prestação de horas extras, com os mecanismos digitais modernos que nós temos e que efetivam com muito mais precisão esta prova. Tivemos muitas realizações e conseguimos atingir o objetivo permanente, que é valorizar a Justiça do Trabalho, mostrar a sua essencialidade na resolução de conflitos e efetivar com celeridade e efetividade a prestação jurisdicional.

Conjur — A Justiça do Trabalho completa 80 anos em 2021. Qual a importância dela para a sociedade?
Peduzzi — A atuação da Justiça do Trabalho foi essencial para o desenvolvimento institucional do país ao longo da sua história. O processo de industrialização trouxe a necessidade de uma estrutura institucional para solucionar os conflitos entre os empregados e os empregadores. Ao longo desses 80 anos, a atuação da Justiça do Trabalho tem sido fundamental, porque auxilia a sociedade brasileira a compor conflitos que são típicos de um sistema capitalista equilibrado entre as demandas empresariais e as trabalhistas. De início, esses conflitos recorriam de uma sociedade originalmente agrária, que buscava se industrializar, e desde esse momento, a Justiça do Trabalho assumiu o papel civilizatório de traduzir as demandas econômicas em uma linguagem de direitos que era virtualmente desconhecida até 1943, ano de promulgação da CLT. Agora temos novas formas de prestação de serviço e esse é o grande desafio do presente. É o caso do teletrabalho, da prestação de serviço por meio das plataformas virtuais e dos aplicativos para entrega de refeições e de transporte. No nosso regime, cabe ao legislador instituir formas de regulamentar e cabe à Justiça do Trabalho, enquanto não há uma legislação que discipline essas novas formas de trabalho, aplicar, de forma técnica, segura e precisa a legislação em vigor.

ConJur — Sobre a prestação de serviço por meio de aplicativos, pode-se afirmar que há uma precarização nas relações de trabalho por conta desse período de pandemia?
Peduzzi — Pode até ocorrer uma precarização, mas tenho outra visão. Penso que o conceito de trabalho digno passa por metamorfoses. Hoje, a grande preocupação não é o emprego. É o trabalho digno e garantir um patamar civilizatório mínimo de direitos a esses trabalhadores que estão engajados numa forma nova de prestar serviços. Ele não pode trabalhar além de uma jornada razoável para que não comprometa sua saúde, tem que ter as garantias que um autônomo tem, que envolve segurança e previdência. Ele não pode adoecer e ficar no vazio, precisa ter a garantia de prestação de serviço médico, percepção do auxílio de enfermidades e de aposentadoria. Isso é possível de ser obtido, ainda que não seja o vínculo regido pela CLT. O trabalho autônomo, introduzido na CLT e que já estava disciplinado no Código Civil, é responsável por reger essas novas relações e os contratos de trabalho que se celebram. Até se pode negociar coletivamente, ampliando o conceito de negociação coletiva, para além das categorias econômica e profissional que representam empregados e empregadores, para que, coletivamente, organizações sindicais também negociem direitos para esses trabalhadores que não têm vínculo de emprego mas que têm direito a essas garantias.

ConJur —  A Justiça está preparada para receber os processos dessas novas relações? A competência para julgar esses casos é da Justiça do Trabalho?
Peduzzi — A emenda 45 foi muito clara no sentido de não termos dúvida a respeito da competência da Justiça do Trabalho para julgar não só a relação, conflitos que surjam de relações de emprego, que é aquela regida pela CLT, como relações de trabalho. O STJ tem decisão, nos casos da Uber, dizendo que a competência em conflitos é da Justiça comum porque não há vínculo de emprego. O TST já afirmou que não há vínculo de emprego entre o motorista e a empresa. Ainda assim, mesmo não havendo vínculo de emprego, há uma relação autônoma que está submetida à jurisdição trabalhista. A Justiça do Trabalho está preparada e tem garantida essa competência no inciso I do artigo 7º da Constituição. Cabe a ela julgar conflitos que surjam de uma relação, ainda que autônoma, produzida e existente entre o prestador do trabalho e a empresa que arregimenta o serviço.

ConJur — Qual a visão da senhora sobre a sustentação oral feita durante as audiências virtuais? Acredita que essa nova modalidade veio para ficar?
Peduzzi — O presencial é, sem dúvida, o adequado. Mas as sustentações orais têm se desenvolvido muito bem. Não temos tido dificuldades, quer entre os julgadores na discussão dos casos, quer para os advogados ou para o Ministério Público. Pelo contrário, os advogados têm economizado, porque muitos não vinham à Brasília. Hoje, de qualquer lugar ele pode fazer a sustentação oral. É possível que, de alguma forma, o sistema de videoconferência seja mantido para questões que não demandam sustentação oral e os votos são abertos. Por isso, acho que veio para ficar, não totalmente, superada essa fase, mas, de alguma forma, essa economia que foi produzida de tempo, de dinheiro, dificilmente vai ser eliminada.

ConJur — Houve resistência nas instâncias inferiores para a realização de audiências virtuais?
Peduzzi — Se identificar os dados estatísticos, é possível verificar que, enquanto o TST julgou mais, os tribunais regionais julgaram um pouco menos porque tiveram também que se adaptar. Isso porque houve uma resistência por parte dos juízes, dos advogados, de fazer audiências de instrução, onde se ouve testemunhas, por esse meio da videoconferência. Como a pandemia está indo além do que prevíamos, já está sendo superada essa dificuldade, porque temos que julgar os processos. No primeiro grau, talvez a retomada do presencial, quando possível, se efetive com mais intensidade. Mas de alguma forma nós vamos manter parte das atividades nesse sistema.

ConJur — Os tribunais das instâncias inferiores respeitam a jurisprudência do TST?
Peduzzi — O que tem de mais importante hoje é a conscientização de que o Poder Judiciário não tem condições de sobreviver ao número de processos se não racionalizar a prestação jurisdicional. Temos que partir do pressuposto de que todas as instâncias vão aplicar a teoria dos precedentes. Para funcionar adequadamente, o sistema de precedentes prevê uma possibilidade de se rediscutir a questão quando, no caso concreto, há uma particularidade, o chamado distinguishing. O reconhecimento dessa distinção deve ser excepcionalíssima e não a regra. Se for estabelecido como regra, não será aplicado o precedente, porque sempre será descoberta uma distinção naquele caso concreto. Temos observado na aplicação dos precedentes que juízes invocam ordinariamente a cláusula do distinguishing para evitar aplicar o precedente vinculante. Existe uma questão de cultura judiciária, que não é diferente na seara trabalhista, em que houve, inicialmente, hoje não mais, uma resistência dos juízes de primeiro grau à teoria dos precedentes porque ela estaria impedindo a livre manifestação da consciência do juiz e do seu juízo na decisão. Mesmo implantada a teoria dos precedentes e a obrigatoriedade quando ele for vinculante, temos que vencer essa cultura de distinguir ordinariamente aquilo que seria extraordinário.

Conjur — Como a senhora enxerga a atuação do Judiciário desde a aprovação da reforma trabalhista? Acredita que impactou no aumento da “uberização”?
Peduzzi — A reforma trabalhista foi editada para modernizar a previsão legal. Não a vejo como supressora de direitos, mas sim como reguladora de situações antes imprevistas na CLT, ajustando a lei à nova realidade do mundo do trabalho. Ainda teremos legislação nova para regular tecnologias telemáticas e inteligência artificial que a reforma ainda não disciplinou. Mas a reforma disciplinou o teletrabalho e possibilitou de imediato a implantação. Disciplinou também o trabalho autônomo, que já era regulado no Código Civil, e o trabalho intermitente, trazendo para a formalidade relações que eram informais. É difícil estabelecer o nexo de causalidade entre a reforma e os efeitos econômicos da pandemia. Até porque, antes da reforma trabalhista, a economia brasileira já estava vivenciando um crescimento na economia informal de serviços. Dados do IBGE mostram que em 2016 a taxa de informalidade da população ocupada era de 39% e, em 2019, subiu para 41,1%. Daí não se pode extrair uma conclusão positiva porque os últimos dados do IBGE, de novembro de 2020, quando já havia a pandemia, a taxa de informalidade caiu novamente para o mesmo patamar de 2017, para 39,1%. Esse fenômeno da “uberização” não decorreu da reforma. Pelo contrário, a reforma foi indicada para disciplinar novas modalidades de relações de trabalho que estavam e estão presentes no nosso dia a dia. Talvez o mais importante da reforma tenha sido a valorização da autonomia da vontade coletiva e individual. Expressamente se diz que a negociação prevalece sobre a lei, só não prevalece contra a Constituição. Mas prevalece porque as partes, coletivamente, sabem o que é melhor para si em termos de horário de trabalho, de jornada, e com isso se atende ao interesse das partes.

Conjur — Como a senhora se vê sendo a primeira mulher a presidir o TST?
Peduzzi — O fato de ser a primeira mulher a presidir o TST tem um significado simbólico. Transmite a ideia de que as mulheres são capazes de realizar os seus sonhos, de realizar os seus projetos profissionais, e que elas são capazes de ocupar postos de liderança. O fato de termos uma mulher na presidência do TST, como já ocorreu nos demais tribunais, reflete a realidade observada no Poder Judiciário nos últimos dez anos, que já registra que 41,25% dos presidentes dos tribunais são ou foram mulheres. O número de juízas trabalhistas em 2018 alcançou 50,5%. O que é mais representativo é essa mensagem emancipatória para as mulheres brasileiras, estudantes, trabalhadoras das diversas áreas, juízes e advogados. Reflete a presença real de uma mulher em um posto de liderança, que é o que se almeja. A responsabilidade é muito grande porque a partir do exercício da presidência com sucesso, todas as outras mulheres estão fortalecidas.

Fonte: Consultor Jurídico
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