O segredo de justiça em ações sobre arbitragem

O segredo de justiça em ações sobre arbitragem

Publicado em 18 de outubro de 2021
Por Olavo A. V. A. Ferreira e Carlos E. Montes Netto

O artigo 93 da Constituição deve ser interpretado sem desprezar os mandamentos constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que protegem o segredo do negócio.

Ao contrário da regra geral dos processos judiciais, que estabelece a publicidade dos atos processuais, nos que versem sobre arbitragem existe a possibilidade de as partes estipularem a confidencialidade do procedimento. O que, em alguns casos, pode se revelar vantajoso, especialmente no mundo dos negócios, no qual o sigilo pode melhor resguardar o interesse dos envolvidos na disputa visando o desenvolvimento empresarial, societário, tecnológico ou comercial, dentre outros.

De acordo com o artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988, a livre iniciativa constitui um dos fundamentos da República, além de representar um dos princípios gerais da atividade econômica e financeira (artigo 170, caput da CF/88). Assim, qualquer intervenção estatal no domínio econômico que venha a mitigar ou suprimir a autonomia da vontade das partes, a exemplo do afastamento pelo Judiciário da cláusula que estipula a confidencialidade do procedimento arbitral, inclusive com relação a eventuais processos judiciais que versem sobre arbitragens sob sigilo, somente se justificaria para resguardar os princípios constitucionais da ordem econômica previstos no artigo 170 da Lei Maior. Deve-se impor o respeito à livre iniciativa e à livre concorrência, que em uma economia livre restringe a interferência estatal nas ações realizadas pelas pessoas e empresas.

Apesar de a Lei de Arbitragem não prever a confidencialidade como regra, ela encontra previsão na maioria dos regulamentos das instituições arbitrais. No âmbito brasileiro podem ser mencionados, por exemplo, o artigo 14 das regras da CCBC; os artigos 10 e 20.1 das regras Amcham; o artigo 13.1 das regras da Camarb; e os artigos 46 e 47 das regras da FGV. No plano internacional a confidencialidade também constitui a regra, conforme se observa do artigo 6º do Estatuto da ICC, do artigo 37 do regulamento das arbitragens internacionais da ICDR, braço internacional da AAA e do artigo 30 do regulamento da LCIA.

É bem verdade que se o processo tiver como parte a administração pública, incidirá obrigatoriamente o princípio da publicidade, previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, reafirmado pelo artigo 2º, parágrafo 3º da Lei de Arbitragem, sob pena de nulidade.

Com relação aos processos judiciais que versam sobre arbitragens, o artigo 189, IV, do CPC, prevê o segredo de justiça, incluindo o cumprimento da carta arbitral, desde que haja comprovação em juízo da estipulação da cláusula de sigilo pelas partes. Ocorre que, apesar dessa previsão legal expressa, tem-se observado a existência de uma polêmica na jurisprudência do TJ-SP, com relação à constitucionalidade do artigo 189, IV, do CPC.

Com relação especificamente aos processos judiciais que versam sobre arbitragens, a 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP, ao julgar o agravo de instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000, em 2 de março, recusou a aplicação do sigilo processual previsto no artigo 189, IV, do CPC a uma ação anulatória de sentença arbitral, com fundamento na aplicação do artigo 93, IX, da Constituição. No mesmo sentido, verifica-se a decisão monocrática do desembargador Azuma Nishi, na apelação cível nº 1048961-82.2019.8.26.0100, em 15 de março. Importante salientar a posição no sentido da nulidade desse tipo de decisão, diante da violação da cláusula de reserva de plenário (artigo 97 da CF/88), reafirmada pela Súmula Vinculante nº 10, já que a decisão competiria ao Órgão Especial.

Discordamos, com todas as venias, do entendimento acima. Tanto que no agravo de instrumento nº 2110621-35.2020, julgado pela 2ª Câmara de Direito Privado, em 17 de dezembro de 2020, envolvendo apenas a partilha de bens de pessoas maiores e capazes em razão de divórcio, o TJ-SP reconheceu o direito ao segredo de justiça, visando resguardar dados das partes protegidos pelo direito constitucional à intimidade, como declarações de Imposto de Renda e extratos bancários. No mesmo sentido é o agravo de instrumento nº 2103902-71.2019, julgado pela 3ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP em 26 de junho de 2019, impondo-se, por dever de coerência, que seja levada em consideração tal posicionamento na abordagem do segredo de justiça nos processos judiciais que analisam arbitragens.

No sentido da constitucionalidade do segredo de justiça, previsto para as ações que versem sobre arbitragem, em 13 de setembro, a 33ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP deu provimento ao agravo de instrumento nº 2071707-62.2021 para determinar a tramitação em segredo de justiça em processo judicial, cujo termo de arbitragem previu expressamente o sigilo de todas e quaisquer informações relacionadas à arbitragem.

Em que pese a existência de entendimentos diversos, sustenta-se neste artigo a constitucionalidade do artigo 189, IV, do CPC, ao entendimento de que o artigo 93, IX, da Constituição deve ser interpretado sem desprezar os mandamentos constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que protegem o segredo do negócio, além da autonomia constitucional da vontade.


Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira e Carlos Eduardo Montes Netto são, respectivamente, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e procurador do Estado de São Paulo; e doutorando e mestre em Direitos Coletivos e da Cidadania pela Unaerp, Ribeirão Preto-SP, e juiz de Direito do Estado de São Paulo.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

Fonte: Valor Econômico
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