Reforma, uberização e competência são desafios da Justiça do Trabalho, 80 anos

Reforma, uberização e competência são desafios da Justiça do Trabalho, 80 anos

Publicado em 3 de maio de 2021

O conceito de trabalho passa por transformações provocadas pelo avanço tecnológico e a epidemia de Covid-19 acelerou ainda mais esse processo. E, apesar da recente reforma trabalhista (Lei 13.467) de 2017, é possível dizer que a Justiça do Trabalho — que completa 80 anos no Brasil neste sábado (1º/5) — terá que se adaptar aos novos tempos e rever antigos dogmas.

Criticada por uns e defendida por outros, a reforma trabalhista já teve impactos na Justiça do Trabalho. A presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministra Maria Cristina Peduzzi, faz uma avaliação positiva da reforma.

“Foi editada para modernizar a previsão legal. Não a vejo como supressora de direitos, mas sim como reguladora de situações antes imprevistas na CLT, ajustando a lei à nova realidade do mundo do trabalho. Ainda teremos legislação nova para regular tecnologias telemáticas e inteligência artificial que a reforma ainda não disciplinou. Mas disciplinou o teletrabalho e possibilitou de imediato a implantação. Disciplinou também o trabalho autônomo, que já era regulado no Código Civil, e o trabalho intermitente, trazendo para a formalidade relações que eram informais”, explicou.

O ministro do TST Ives Gandra Filho também destaca as novidades implementadas pela reforma. Segundo ele, a nova legislação supriu uma série lacunas da CLT que clamavam por disciplina legal. “Ao mesmo tempo, aquilo que, vamos dizer assim, seria a espinha dorsal da reforma trabalhista, foi prestigiar a negociação coletiva. Em vez de o Estado intervir continuamente através de leis, sindicato e empresas se acertam, porque elas sabem onde o sapato aperta. E se a gente for ver o artigo 611-A, 611-B, hoje traçam os parâmetros na negociação coletiva. Quinze direitos no 611-A são passíveis de flexibilização, 30 direitos não são passíveis de flexibilização no 611-B. Portanto, regular teletrabalho, regular contrato intermitente, regular terceirização. Agora, alguns aspectos ainda precisam de um aprimoramento”, afirma.

Apesar de enxergar avanços positivos na reforma trabalhista como a regulação do conteúdo da autonomia negocial coletiva, o ministro Douglas Rodrigues, do TST, acredita que existem pontos questionáveis e de eficácia ainda não comprovada, como o do contrato de trabalho intermitente. “Também as regras de contenção do acesso à justiça, a partir da previsão da captura de recursos do trabalhador, em qualquer processo, para pagamento de valores de sucumbência parece problematizável, estando a matéria em exame perante o STF”, lembra.

O ministro se refere à ADI 5.766, proposta pela Procuradoria-Geral da República, que questiona três artigos da Lei 13.467/2017. Conforme os dispositivos, quem perder litígios deverá arcar com o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios e periciais de sucumbência. As imposições valem mesmo quando a parte for beneficiária da Justiça gratuita. E, se o sucumbente receber valores por ter vencido outro processo trabalhista, esse dinheiro deverá ser usado para pagar as custas da ação em que foi derrotado. O julgamento foi suspenso em 2018 após pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.

 Em fevereiro deste ano, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 409/2021, que sugere o fim da exigência de honorários sucumbenciais em processos trabalhistas. O texto altera a polêmica norma implantada na reforma de 2017.

 A autoria do PL é do deputado Carlos Bezerra (MDB-MT). Para ele, a nova regra se tornou um obstáculo para os trabalhadores que recorrem ao Judiciário contra seus empregadores, pois nem mesmo os beneficiários da Justiça gratuita estão isentos do pagamento desses honorários.

Os dispositivos de contenção de acesso à Justiça do Trabalho, como o pagamento de honorários por parte do trabalhador, já têm impactos diretos na rotina de juízes. Otavio Calvet, juiz do Trabalho e colunista da ConJur, diz acreditar que no geral “vivemos em um modelo de sociedade que estimula o litígio, e a Justiça do Trabalho sofre com isso”. “Após a Constituição de 1988, vimos um aumento de ações na Justiça como um todo. Na Justiça do Trabalho, além da grande quantidade de ações, cada uma delas tem dezenas de pedidos. Uma ação trabalhista vale por umas 15 ações civis”, explica.

Para ele, a estratégia de reduzir a gratuidade — que antes era praticamente uma regra — se mostrou muito eficiente. “Isso instigou a ideia de que é preciso fazer uma análise prévia antes de acionar a Justiça, já que existe o risco hoje de ser condenado e ser devedor ou perder parte dos seus créditos por conta dos honorários de sucumbência”, diz. Segundo Calvet, logo após a vigência da reforma trabalhista, o número de ações chegou a cair 40% e houve uma mudança na quantidade e de tipos de pedidos. ““Atualmente existem menos o que chamamos pejorativamente de aventuras jurídicas. Antes o sistema estimulava a tentativa. Hoje, ele estimula a certeza”, explica.

O professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador editorial da Editora Mizuno e colunista da ConJurRicardo Calcini, acredita que a falta de uma fixação de tese pelo Supremo deixa a questão da captura de créditos trabalhistas para pagamento de verba honorária ainda mais complexa.

“A verba honorária sucumbencial continua, sem dúvida, como o maior obstáculo aos trabalhadores para o ajuizamento novos pedidos nas ações trabalhistas, as quais ainda estão abaixo do número de litígios existentes antes da Lei 13.467/2017. E o problema maior é que, até o presente momento, passados quase quatro anos da lei reformista, o Supremo ainda não decidiu se, para o empregado, a concessão da gratuidade judiciária deferida em juízo afasta (ou não) a exigibilidade do pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais, nos pedidos em que o trabalhador restar sucumbente”, argumenta.

Uberização do trabalho: economia de “bicos”
Fundada em 2009 por Garrett Camp e Travis Kalanick, nos Estados Unidos, a Uber revolucionou o mercado de transporte individual de passageiros e empresta o nome a um novo conceito de trabalho. Se define como “uberização” toda atividade laboral de trabalhadores que atuam sob a demanda de usuários de uma plataforma tecnológica: motoristas, entregadores e prestadores de serviço. Outra terminologia usada, e que reflete a natureza dessa relação, é gig economy, ou economia de “bicos”. Em comum, esses trabalhadores têm sua fonte de renda vinculada a empresas de tecnologia. Juridicamente, essa nova modalidade representa um desafio regulatório em todo o mundo e um desafio para a Justiça do Trabalho.

Como moderar conflitos e balancear as mudanças provocadas na economia pela tecnologia e ainda sim dotar trabalhadores do direito constitucional absoluto da dignidade da pessoa humana, evitando abusos?

Peduzzi acredita que pode até ocorrer uma precarização do trabalho a curto prazo, mas tem uma visão mais otimista das novas modalidades impostas pela tecnologia. “Penso que o conceito de trabalho digno passa por metamorfoses. Hoje, a grande preocupação não é o emprego. É o trabalho digno e garantir um patamar civilizatório mínimo de direitos a esses trabalhadores que estão engajados numa forma nova de prestar serviços. Ele não pode trabalhar além de uma jornada razoável para que não comprometa sua saúde, tem que ter as garantias que um autônomo tem, que envolve segurança e previdência. Ele não pode adoecer e ficar no vazio, precisa ter a garantia de prestação de serviço médico, percepção do auxílio de enfermidades e de aposentadoria. Isso é possível de ser obtido, ainda que não seja o vínculo regido pela CLT”, sustenta.

A crise econômica imposta pelo avanço da Covid-19 no país tornou ainda mais urgente que se discipline essa nova categoria de trabalho. Para se ter ideia, a taxa média de desemprego no Brasil foi de 14,4% entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021. Os índices da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE revelam que o país amarga 14,4 milhões de desempregados. É o maior índice de desemprego desde quando começou série histórica da pesquisa, em 2012.

Esses índices empurram cada vez mais profissionais às ocupações (bicos) oferecidas por aplicativos. Desde 2020 pipocam no país protestos de entregadores de aplicativos por melhores condições de trabalho.

Um dos principais debates jurídicos trabalhistas atuais é se é possível apontar vínculo trabalhista entre essa multidão de profissionais e as empresas de tecnologia.

O ministro Breno Medeiros foi o relator de uma decisão recente que teve bastante repercussão no meio jurídico, especialmente na Justiça do Trabalho, principalmente por refletir as transformações que as relações trabalhistas estão tendo em um mundo no qual os vínculos de emprego são cada vez mais tênues. Em decisão seguida por unanimidade pela 5ª Turma, e a primeira desse tipo no TST, ele sustentou que não há vínculo empregatício entre empresas e motoristas de aplicativo.

Longe de estar resolvida, a questão ainda vai continuar em pauta por longo tempo, como previu a própria presidente do TST, até haver a fixação de jurisprudência sobre o tema. Embora o Superior Tribunal de Justiça tenha decidido que a competência para julgar esses conflitos seja a justiça comum, o entendimento geral é o de que, como duas turmas do TST já decidiram em sentido contrário, e, mesmo não existindo vínculo, a relação autônoma deve estar submetida à Justiça do Trabalho.

Na decisão sobre o motorista de aplicativo e a empresa Uber, Medeiros sustentou que não há subordinação entre as partes porque há flexibilidade na prestação de serviços, e a empresa não exige exclusividade. “A ampla flexibilidade do trabalhador em determinar a rotina, os horários de trabalho, os locais em que deseja atuar e a quantidade de clientes que pretende atender por dia é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a subordinação”, afirmou.

Em outra decisão, o TRT-15, ao reconhecer o vínculo entre um motorista e a Uber, afirmou que que a plataforma pratica uma “manipulação de jurisprudência”. Sinal que de o entendimento uníssono a respeito está longe de ser alcançado.

Calvet sustenta que a tendência no mundo é de reconhecer que essas pessoas que trabalham por meio de plataformas digitais estão carentes de proteção social. “Essa nova forma de trabalhar não pode ficar ao léu e sem regulamentação. Alguns países têm tentado enquadrar esses trabalhadores em esquemas já existentes e outros têm criado novas regulamentações”, explica.

Também há os que defendem que essas pessoas sequer são trabalhadores e não passam de meros usuários de um software. Calvet acredita na visão intermediária, que prega que essas pessoas possuem uma relação de trabalho. “Na minha visão, esses profissionais possuem uma relação de trabalho. São seres humanos gastando energia de trabalho não por iniciativa própria, mas por conta de um software. E a empresa de tecnologia fica com parte dos dividendos oriundos dessa energia de trabalho gasta. É preciso fazer um novo enquadramento e perceber que é uma nova forma de trabalhar que não se enquadra na forma tradicional da CLT, mas que precisa de regulação para que esses profissionais tenham acesso a proteção social”, argumenta.

Também defende que a comunidade trabalhista deveria se engajar na construção de uma legislação que garanta uma proteção mínima que se enquadre a todos os trabalhadores. “É preciso se preparar para esse futuro previsível que inclui uma série de inovações que não vamos conseguir encaixar em uma lei pensada para outra realidade.”

Já Calcini diz que não se pode equiparar a legislação brasileira àquelas existentes em outros países, uma vez que há tratamentos legislativos distintos para trabalhadores e empregados aqui no Brasil. “Temos que reconhecer as diferenças de formatos e de perfis do Poder Judiciário Trabalhista de cada localidade, as quais impactam na solução das controvérsias quando se está diante do fenômeno global da uberização do trabalho. Aliás, mesmo em nosso país, já é sabida a grande divergência de entendimento existente entre os próprios magistrados trabalhistas quando o assunto é reconhecer eventual vínculo de emprego entre trabalhadores e as plataformas”, explica.

Na California — local de criação da Uber — , a assembleia legislativa local aprovou em 2019 uma lei que obrigava as empresas de aplicativo Uber e Lyft a contratar seus motoristas como empregados. Ou seja, estabelecer vínculo empregatício para seus trabalhadores.

A medida acabou derrubada em dezembro de 2020. Os eleitores da Califórnia votaram sim na chamada “Proposta 22”, que desobriga os serviços de transporte por aplicativo Uber e Lyft de contratarem motoristas. A medida também é aplicada à empresa de delivery DooDash, que também poderá contratar a mão de obra de entregadores sem vínculo empregatício.

Conforme o texto, os motoristas podem decidir “quando, onde e o quanto trabalhar, mas não obteriam os benefícios e as proteções que empresas devem oferecer a funcionários”.

Com o resultado da consulta popular, as três empresas estão isentas de uma lei trabalhista da Califórnia que as obrigaria a contratar formalmente motoristas e pagar por direitos como assistência médica e seguro-desemprego.

Em março deste ano, a Espanha anunciou uma medida que irá atribuir direitos trabalhistas aos entregadores de aplicativos. O texto, acordado com sindicatos e empregadores, será introduzido na legislação e deve considerar os trabalhadores como assalariados.

A providência é inédita na Europa e se baseia em decisão de setembro do último ano proferida pelo Tribunal Supremo do país, que reconheceu o vínculo empregatício entre um entregador ciclista e a startup Glovo. As empresas terão três meses para se adequarem às regras.

Intervenções supremas
Nos últimos tempos, o Supremo tem sido provocado para mediar uma série de questões provocadas pela reforma trabalhista. Críticos desse fenômeno acreditam que o STF tem retirado competência do TST. Para Calvet, isso ocorre por conta de uma atuação da magistratura do trabalho que se pauta pelo voluntarismo. “Sou extremamente crítico a essa forma de interpretar e aplicar o Direito do Trabalho. Como estamos passando por um momento que a polarização ideológica do país está em um ponto agressivo, qualquer tipo de pronunciamento que passe uma orientação ideológica provoca uma reação muito forte”, diz.

Ele argumenta que a JT tem uma fama que considera injusta de atuar sempre a favor do lado do trabalhador. “Nós aplicamos uma lei que é protetiva. O resultado natural é gerar a sensação de dar mais proteção a um dos lados. O outro ponto é que muitos magistrados se manifestam publicamente de forma ideológica. Nesse sentido, entendendo a crítica da sociedade, mas isso não representa a maioria das decisões da Justiça do Trabalho”, comenta.

A atuação do STF, nesse sentido, seria uma reação a essa percepção. “Quando o Supremo entende que a JT não é competente para julgar uma alegação de fraude… Como em um caso concreto que uma pessoa está atuando formalmente como transportador autônomo de cargas e existe uma alegação de que isso é uma fraude. Que ele é um empregado. Quando o STF entende que a Justiça do Trabalho não pode julgar uma alegação de vínculo de emprego, se cria um precedente que pode esvaziar completamente a JT”, argumenta.

Esse esvaziamento ocorreria porque, segundo Calvet, a lógica irá se inverter. “Todos que estiverem trabalhando em um regime de trabalho que é um simulacro para evitar uma relação de emprego terão que procurar a Justiça comum para que ela defina se há fraude. E só então buscarem a Justiça do Trabalho para exigir seus direitos. Isso pode criar uma tendência de desqualificar o trabalhador como tal. Ao olharmos para um ser humano que gasta sua energia em uma relação de trabalho, não podemos enxergar relações comerciais ou civis. Isso irá nos fazer perder como sociedade um elemento básico e secular, que a história já demonstrou, que é a proteção humana de um trabalhador. Acho isso extremamente perigoso”, define.

Calcini, por sua vez, lembra que, “invariavelmente, questões trabalhistas previstas na CLT e em outras legislações extravagantes também guardam relação com direitos e garantias constitucionais”. “Por isso, ainda que pacificadas pelo TST, ditas polêmicas justificam a atuação da Suprema Corte que, como ocorreu recentemente com caso do índice de correção dos débitos trabalhistas, pode decidir contrariamente ao entendimento já sedimentado na Justiça Laboral.”

Fonte: Consultor Jurídico
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