Montadoras exigem mais qualificação e menos profissionais

Montadoras exigem mais qualificação e menos profissionais

Publicado em 6 de abril de 2022

Tecnologia na indústria automotiva muda forma de produzir e afeta nível de emprego no setor.

Os carros eram muito diferentes do que são hoje quando Valério Marochi foi aprendiz do curso técnico em manutenção automotiva do Senai, aos 16 anos de idade. Como professor na mesma instituição, hoje, aos 32, ele supervisiona cursos com os quais nem se sonhava na época, como segurança em eletrificação veicular e eletromobilidade. Marochi é um exemplo de como, à esteira da evolução do automóvel, o trabalho nessa indústria muda e transforma profissões que a envolvem – do operário do chão de fábrica ao engenheiro e executivos. Especialistas, sindicalistas e representantes da indústria concordam que novas habilidades substituirão antigas funções e que a necessidade de incorporar tecnologia ao universo metalúrgico traz novidades positivas por um lado. Por outro, no entanto, reduz a oferta de empregos. Mesmo assim, trabalhar em fábricas de carros continua sendo o sonho de muitos.

A produção de um automóvel a combustão envolve milhares de peças – entre 3,5 mil e 5 mil cada, segundo especialistas. Por isso, a cadeia desse setor foi sempre gigante e complexa. Mesmo assim, com o avanço da robotização e modelos de manufatura mais enxuta, o nível de emprego na indústria automobilística vem encolhendo. Enquanto o volume de produção de veículos no Brasil hoje é o dobro de 40 anos atrás, o número de empregados nas montadoras está 25% menor. Desde 1980, o número de montadoras no país mais do que dobrou. Mas, ao mesmo tempo, mais de 30 mil postos de trabalho foram fechados.

A eletrificação dos veículos tende a acelerar esse processo em todo o mundo, já que um carro elétrico é feito com menos de um terço das peças de um similar a combustão. Além disso, seu processo de montagem é bem mais simples. Mas a digitalização na indústria e aumento da conectividade do automóvel, por outro lado, abrem caminhos a novas profissões. Com carros cada vez mais próximos de funções executadas por um celular ou computador, o perfil profissional na indústria automotiva se transforma. A preocupação, principalmente entre os trabalhadores, é saber o quanto dessa evolução profissional envolverá o Brasil. Ou se, ao contrário, o país será excluído desse processo.

O Brasil ainda não produz carros 100% elétricos, carregados em tomadas. E mal começou a produzir híbridos – veículos em que um motor a combustão, abastecido com gasolina ou etanol, é a principal fonte de energia de outro, elétrico. Mas tradicionais formadores de mão de obra da indústria já percebem a necessidade de inovar na oferta de cursos. O Serviço Nacional de Aprendizagem Profissional (Senai), o centro de formação técnica mais usado pela indústria automobilística há mais de meio século, percebeu que já existe demanda por conhecimento em eletrificação veicular nas oficinas que fazem a manutenção dos carros elétricos e híbridos que já rodam no país.

O Senai do Paraná oferece cursos tanto para quem busca noções sobre eletromobilidade como para quem precisa colocar a mão na massa para reparar carros e até outros meios de transporte elétricos, como patinetes. “Não apenas jovens, mas quem já está no mercado e quer expandir conhecimento tem nos procurado”, afirma Mário Rafael Calzavara, coordenador de educação do Centro de Mobilidade do Senai-PR. Segundo ele, a tendência é ampliar ainda mais o conhecimento nessa área, o que envolve até as futuras necessidades de reciclagem desses novos tipos de veículos.

Há poucos dias, o Senai do Paraná fechou uma parceria com a Tupy e a BMW para aprofundar estudos em soluções sustentáveis para reciclagem de baterias.

Nessa busca por conhecimento, às vezes é preciso cruzar fronteiras. Especialista em engenharia de veículos híbridos e elétricos, Valério Marochi, supervisor dos cursos de mobilidade do Senai do Paraná, recebeu, no ano passado, certificação internacional, na Alemanha, a partir da qual começa a replicar, no Brasil, conhecimento sobre segurança em alta tensão – uma habilidade que não preocupava tanto os mecânicos de carros no passado. As mudanças não se limitam às questões técnicas. “Começamos a perceber lacunas em outras áreas, como legislação”, diz Marochi.

Na comunidade automotiva, alguns são mais pessimistas. “Numa sociedade digitalizada, os empregos vão mudar de especialização. Mas não é porque o mundo vai se digitalizar que esses empregos vão ficar no Brasil”, afirma uma fonte da indústria, que prevê poucas chances de o Brasil se inserir nesse contexto.

Outros, no entanto, preveem que a indústria automobilística pode aqui também evoluir e se transformar numa combinação de especialidades. Montadoras tendem a se tornar cada vez mais empresas de tecnologia. E, por isso, precisarão de gente que saiba manejar softwares tanto quanto historicamente não puderam prescindir de ferramenteiros.

“Um supervisor de linha hoje maneja o processo de produção por meio de um tablet”, destaca o presidente da Renault do Brasil, Ricardo Gondo. Para o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes, a maior mudança começou em 2018 com a chamada indústria 4.0. “Hoje, as linhas de montagem geram dados; máquinas falam com máquinas”, destaca.

Para o presidente das Anfavea, o processo convencional de treinamento de pessoal numa fábrica de veículos, no entanto, está longe de acabar. Segundo ele, as montadoras ainda precisam dos centros de treinamento, como Senai, para a formação de pessoal desde os jovens aprendizes. E cabe às empresas fornecer os novos carros para a aprendizagem. “Quando instalamos uma nova fábrica, precisamos ceder os novos tipos de veículos para que sejam montados e desmontados pelos alunos e professores, quantas vezes sejam necessárias”, destaca o dirigente.

Segundo ele, a transformação dos veículos já traz novos profissionais e nova cultura não apenas na área técnica nas equipes de engenharia como também entre os motoristas que fazem os testes nas pistas.

As mudanças não se limitam às fábricas. O mecânico também está mudando. “Nas concessionárias, ele utiliza até óculos 3D para executar o serviço de forma mais precisa”, afirma Moraes. O mesmo vale para os veículos em circulação. “Em caminhões, o veículo precisa gerar dados para o operador monitorar a frota de forma a não ter paradas desnecessárias”, completa.

Para Antônio Jorge Martins, coordenador de cursos da área automotiva da Fundação Getulio Vargas, a automação “é um caminho sem volta”, com grande foco na robotização. “Isso vai mudar radicalmente o perfil da mão de obra porque a geração de novas funções é fruto do processo de robotização”, diz. Para Martins, a indústria automobilística não oferece mais vagas porque não há substituição de funções antigas. “Esse setor trará elementos com uma nova visão.”

Segundo ele, as mudanças vão abranger também o gerenciamento do negócio. A indústria, destaca o professor, se volta hoje muito mais à produtividade e ao lucro do que ao volume. “Quem não olhar o caixa vai ficar fora do mercado”, afirma.

O professor da FGV aponta a Tesla, fabricante de veículos elétricos do bilionário Elon Musk, como pioneira no novo conceito de veículo e de indústria. “A Tesla já nasceu sob uma nova configuração e a sociedade foi criando uma admiração por isso”, afirma Martins.

Segundo ele, a partir desses conceitos, as montadoras tradicionais passaram a “correr atrás” de modelos de negócios que contemplem o desenvolvimento de carros movidos a novos tipos de energia ao mesmo tempo que garantem conectividade. Cursos oferecidos pela FGV nessa área têm grande foco na transformação digital.

Nesse contexto, a expansão do conhecimento não tem limites. E aproxima mais a indústria da área acadêmica. Recentemente a Stellantis, montadora que surgiu da união mundial entre Fiat, Chrysler, Peugeot e Citroën, firmou parcerias com a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Estadual de Pernambuco para ambiciosos projetos de pesquisa na área da mobilidade. Um dos exemplos é um projeto de desenvolvimento e aplicação de tecnologias de internet das coisas para melhorar a segurança de motoristas, passageiros e pedestres.

Nesse processo, regiões em que os parques industriais foram erguidos sob a ótica das antigas fábricas de carros começam a discutir como impedir que essa evolução não as transforme em vítimas de uma desindustrialização. Esse é o caso do ABC, que levará tempo para superar o trauma do fechamento da fábrica da Ford, um símbolo na região, e que ontem perdeu mais uma fábrica: a da Toyota, erguida há 60 anos.

Para Aroaldo Oliveira da Silva, diretor-executivo do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, não é hora de lamentar as perdas. Nem muito menos de querer preservar modelos do passado. Para ele, a evolução do transporte e a eletrificação dos automóveis abrem oportunidades para indústria, trabalhadores e poder público buscarem uma política industrial adequada ao momento. “Veja o caso dos semicondutores; o setor é refém de um produto 100% importado”, diz o dirigente da entidade, que na última década viu a base de metalúrgicos diminuir de 100 mil para 60 mil.

Silva aponta o plano do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que busca no estímulo ao desenvolvimento da indústria de baterias, por exemplo, um meio de preservar a vocação automotiva do país onde nasceu a linha de montagem. “A automação não é de todo ruim. Existem tipos de trabalho que não foram feitos para o ser humano. Por isso, temos que abraçar as oportunidades para participar dessa nova indústria”, afirma o dirigente.

Operários demitidos vão da insistência à busca por novos ares

Com fechamento da Ford, muitos optaram por abrir negócios próprios, enquanto outros continuam na profissão.

“Se você conseguir entrar numa montadora vai se dar bem”, disse, certo dia, o pai de Lucas Sanches Padilha. E assim aconteceu com o jovem de São Bernardo do Campo.

A previsão do pai parecia ter dado errado quando a Ford fechou a fábrica do ABC, em 2020. Padilha trabalhou ali durante seis anos, desde os 19, na área de montagem. Aprendeu a fazer tanto carros como caminhões.

Mas ele não desistiu. Insistiu na vocação e logo tentou uma vaga na vizinha Mercedes-Benz, onde trabalha hoje na montagem de cabines de caminhão.

“Foi na Ford que eu descobri o que realmente gostava de fazer”, afirma. “Era um sonho trabalhar numa montadora”, completa.

Assim que perdeu o emprego, Padilha tirou só “um tempinho” para passear e descansar. Quando decidiu retomar a busca por um emprego em montadora veio a pandemia.

Mas, além da vontade de continuar na área e da experiência. ele também contou com a sorte. O mercado de caminhões manteve-se aquecido mesmo na pandemia como consequência da demanda do agronegócio.

“O fato de ter trabalhado na Ford foi um diferencial”, diz. Emprego em montadora no currículo quase sempre funcionou, no ABC e outras regiões, como um cartão de visitas para ingressar em outra. Em geral, diz Padilha, os métodos e as ferramentas são os mesmos.

Em junho de 2021 o metalúrgico começou a trabalhar na Mercedes. Teve de se conformar com a vaga no terceiro turno, que se estende até a madrugada. Mas ele nem achou tão ruim. Conseguiu organizar melhor o tempo para caprichar na natação e exercícios físicos na academia.

Padilha percebe as mudanças do trabalho nas fábricas de carros. Mas ele não desanima. “Alguém vai precisar produzir os componentes da automação”, diz. Ele defende, porém, a produção nacional de veículos como forma de manter os empregos no setor. Seu sonho, agora, é voltar a cursar a faculdade, mas sem abandonar a rotina de trabalho na linha de montagem.

Quando a Ford fechou as fábricas de São Bernardo, Taubaté (SP) e Camaçari (BA), a indenização dos empregados encheu os olhos de muitos, que se aventuraram em negócios próprios. Alguns se deram mal, segundo contam. É o caso de um que acabara de comprar uma van para fazer entregas quando lhe roubaram o veículo, ainda sem seguro. Outros, porém, se deram bem.

Valcir Cardoso Junior e a esposa, Ana Paula, ficaram sem rumo quando a Ford anunciou o fim da produção no ABC. Ele já somava 12 anos de trabalho como analista de qualidade. Ela era montadora. Eles se conheceram na fábrica. Estão casados há seis anos e têm uma filha de quatro.

“A gente nem imaginava que isso iria acontecer algum dia”, afirma ele. A dupla decidiu, então, aderir aos cursos oferecidos aos demitidos numa parceria entre a Ford, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Foi ali que eles se aprimoraram em conhecimentos como gerenciamento de fluxo de caixa. E, assim, decidiram encarar a abertura de um negócio próprio.

Uma parte das indenizações do casal foi usada para quitar o apartamento, outra ficou de reserva para emergências e a terceira foi gasta para comprar uma loja de churrasqueiras domésticas e acessórios em Santo André. O negócio parecia sólido, já com 25 anos no mercado. O proprietário queria se aposentar.

A pandemia chegou dando a impressão de que o casal de metalúrgicos havia feito um mau negócio. O começo foi difícil. Mas, aos poucos eles foram percebendo o lado bom, para o seu negócio, do surto de covid-19, que forçava as pessoas a ficar em casa. E a cuidar dos seus espaços para passar melhor pela crise sanitária.

Deixar de frequentar restaurantes e fazer o próprio churrasco em casa foi uma das alternativas que favoreceu a Art Barro, a loja na Vila Pires que, aos poucos, tem inovado com a oferta não só de churrasqueiras e fogões de alvenaria para varandas gourmet como também soluções para pequenas cozinhas. Até antigos colegas da Ford viraram fregueses.

A rotina dos ex-operários mudou totalmente. No lugar do salário garantido e benefícios o casal agora lida com o controle diário do orçamento. Cardoso está feliz com a escolha. Mas, apaixonado por carros, não esquece os tempos na Ford. Ele diz que uma montadora ainda é o melhor lugar para se trabalhar.

Fonte: Valor Econômico
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