A greve dos entregadores e a fome de direitos

A greve dos entregadores e a fome de direitos

Publicado em 22 de abril de 2025
Por Francesca Columbu

Nos dias 31 de março e 1º de abril de 2025, os entregadores de aplicativo paralisaram suas atividades em diversas cidades brasileiras, em protesto contra a alarmante precarização das suas condições de trabalho. Entre as principais reivindicações, destacam-se a revisão das tarifas mínimas de entrega, o fim de bloqueios arbitrários, o acesso às garantias mínimas de proteção social, isto é, o reconhecimento de direitos trabalhistas básicos, que deveriam representar o patamar mínimo civilizatório de qualquer sociedade contemporânea, ao invés de ser considerados privilégios de uma parcela sempre mais restrita da sociedade.

Os trabalhadores das plataformas digitais de entrega são formalmente contratados como autônomos, portanto a proteção trabalhista não os alcança: perante a legislação, tais trabalhadores possuem a liberdade de autodeterminar o próprio negócio — são, portanto, “empreendedores de si mesmo”. Pena que tal autonomia se reduz à ilusória e inútil liberdade de decidir “quando” trabalhar, uma vez que, na realidade, as principais regras sobre a execução da atividade de entrega são estabelecidas pela plataforma. Os entregadores, na prática, são gerenciados por algoritmos que estabelecem o preço do serviço, definem e controlam as rotas, avaliam o desempenho e, finalmente, disciplinam a conduta por meio de critérios não totalmente transparentes e, portanto, abusivos.

Apesar da condição solitária de quem trabalha pelas plataformas de entrega (e – em geral – para a maioria das plataformas digitais de trabalho), esses trabalhadores vêm se organizando de forma coletiva, construindo associações, criando conexões tanto com os sindicatos tradicionais quanto com os movimentos sociais em geral.

Breque dos Apps, direito de greve e a liberdade sindical

O mais recente movimento dos entregadores conversa diretamente com a mobilização nacional conhecida como “Breque dos Apps”, greve definida de tipo ambiental que ocorreu em julho de 2020, em plena pandemia, representando uma das maiores paralisações organizadas por trabalhadores de aplicativo no Brasil. Tanto o Breque dos Apps quanto as mobilizações mais recentes são cruciais na luta desses trabalhadores, pois permitem dar voz às novas identidades coletivas que, mesmo em um sistema de trabalho fragmentado, conseguem alcançar visibilidade pública e midiática. As paralisações exercem, de fato, significativa pressão política sobre o ecossistema institucional e sobre a sociedade como um todo que convive e depende diariamente dos serviços prestados por esses trabalhadores e trabalhadoras.

Do ponto de vista jurídico, é importante destacar que as paralisações recentes representam não apenas uma denúncia das condições de trabalho desta categoria, mas também o exercício de um direito fundamental: o direito de greve. Me parece que no atual cenário trabalhista, é um dever cívico celebrar o fortalecimento da solidariedade e, portanto, da luta coletivas dos que vivem do próprio trabalho.

O direito de greve é previsto no artigo 9º da Constituição Federal de 1988 que dispõe que compete aos trabalhadores a decisão sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses a serem defendidos. Tradicionalmente, o direito de greve é associado ao trabalhador com vínculo de emprego, contudo cabe sempre lembrar que a liberdade sindical (e a greve como manifestação desta) não se restringe ao emprego formal, pelo contrário, a Constituição brasileira no próprio artigo 9° fala em “trabalhadores” sem especificar a natureza do vínculo jurídico que liga estes ao sujeito que solicita e gerencia a prestação. A resistência institucional em reconhecer esses profissionais como sujeitos de direitos coletivos, com base exclusivamente em sua condição jurídica de autônomos, revela-se infundada à luz do ordenamento jurídico vigente.

Internacionalmente, o direito à liberdade sindical, assegurado pela Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é garantido aos “trabalhadores”, e a própria OIT  reforçou a ideia pela qual os princípios e direitos fundamentais no trabalho, como a liberdade sindical, não estão condicionados, apenas, à existência de uma relação de emprego: “são aplicáveis aos trabalhadores de plataformas da mesma forma que a todos os outros trabalhadores, independentemente da sua situação profissional”. Isso reforça que o direito de greve não pode ser privilégio apenas dos formalmente contratados, mas um instrumento de todo e qualquer trabalhador, inclusive os que atuam em condições jurídicas atípicas ou informais.

Conforme a lição da doutrina, é justamente por meio do exercício da liberdade sindical que se materializa a organização do grupo e emerge a identidade coletiva. Neste sentido, o jurista uruguaio Ermida Uriarte ensina que apenas quando a liberdade sindical é assegurada é possível o exercício de todos os outros direitos no trabalho: “a liberdade sindical não é apenas mais um dos direitos humanos ou fundamentais, mas é um pré-requisito ou condição para a posse e o exercício de outros direitos. Usando uma expressão em voga, pode-se dizer que é um direito a ter direitos, um direito gerador ou criador de outros direitos”.

Fome na categoria

As greves são o principal instrumento de reapropriação de liberdade para os trabalhadores. Elas denunciam a fome sentida por milhares de trabalhadores relegados a condições de trabalho que não permitem a manutenção de sua própria subsistência. E denunciam, também, a fome de direitos mínimos cuja garantia deveria ser a premissa de todo sistema de justiça social.

Finalmente, é preciso entender que, no contexto das plataformas digitais de trabalho, a greve é também um instrumento que rompe com a invisibilização e o isolamento dos trabalhadores e escancara as dificuldades vividas pelas condições de trabalho dessa categoria.

A tragédia do nosso tempo é que a fome tenha se tornado um fenômeno naturalizado, enquanto a luta pelo cumprimento dos direitos garantidos pela Constituição ainda enfrenta resistência e estranhamento.  É necessário sempre reforçar o compromisso democrático intrínseco à proteção laboral, garantindo e fomentando o exercício da liberdade sindical em todas as suas manifestações. É grave quando é greve.

Fonte: Consultor Jurídico
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