É possível odiar seu emprego, mas amar seu trabalho

É possível odiar seu emprego, mas amar seu trabalho

Publicado em 6 de março de 2023
Por Sarah O’Connor

A colunista Sarah O’Connor fala sobre como a falta de recursos e a sobrecarga podem fazer até os mais comprometidos e devotos funcionários quererem ir embora.

Você não odeia quando uma boa teoria cai por terra? O livro do já falecido antropólogo David Graeber, “Bullshit Jobs”, tinha uma ótima premissa: que a economia moderna tem gerado grandes números de trabalhos que não tem sentido e que “as pessoas fazendo esses trabalhos estão infelizes porque sabem que seu trabalho é inútil”. Advogados de empresas, lobistas, gerentes de médio escalão – eles são, todos, inúteis, e sabem disso.

Já se passaram cinco anos desde que o livro foi publicado, mas ele ainda costuma ser bastante comentado, em especial no contexto do quebra-cabeça dos dias de hoje sobre o porquê de algumas pessoas estarem deixando a força de trabalho desde o início da pandemia. Será que os trabalhadores simplesmente se cansaram de fingir que o trabalho que faziam todos os dias realmente importava?

O problema é que os dados não dão, de forma alguma, grande sustentação à teoria dos “empregos inúteis”. Há poucos anos, os pesquisadores Magdalena Soffia, Alex Wood e Brendan Burchell se debruçaram sobre uma série de pesquisas gigantescas da União Europeia sobre as condições de trabalho para tentar descobrir se é verdade que um número cada vez maior de pessoas vê seu trabalho como inútil. Na verdade, diante da afirmação “tenho a sensação de estar a fazer um trabalho útil”, apenas cerca de 5% dos trabalhadores em 2015 responderam com um “raramente” ou um “nunca”. E essa proporção diminuiu, já que em 2005 estava em cerca de 8%.

Em contraste com a ideia de que é mais comum encontrar empregos inúteis em setores de colarinho branco bem remunerados, a pesquisa revelou que coletores de lixo e faxineiros tinham maior propensão a dizer que não faziam um trabalho útil do que profissionais jurídicos e administrativos.

A colunista reflete sobre porquê de algumas pessoas estarem deixando a força de trabalho desde o início da pandemia as razões de os trabalhadores estarem deixando seus empregos. Uma dela seria simplesmente porque se cansaram de fingir que o trabalho que faziam todos os dias realmente importava — Foto: Freepick

Claro, existe a possibilidade de que as pessoas estejam mentindo a si mesmas ou aos que fazem a pesquisa. Também é possível que as pessoas vejam seu trabalho como “útil” em um sentido mais restrito, mas ainda o achem inútil em termos mais profundos, que não são capturados por essa pergunta. Ou, talvez, a teoria esteja errada.

Mesmo que esteja, acho que Graeber apontou uma distinção importante que muitas vezes passa despercebida: há uma diferença entre como uma pessoa pode se sentir em relação a seu emprego e como ela pode se sentir em relação a seu trabalho real. Ele estava interessado na ideia de que alguém poderia ter um bom emprego, no sentido de ser bem remunerado e respeitado pela sociedade, mas ainda assim odiar seu trabalho. Estou interessada no inverso. Cada vez mais, encontro pessoas que dizem amar seu trabalho, mas odiar seu emprego.

É o caso de assistentes sociais que cuidam de pessoas em domicílio ou em casas de repouso. Em muitos países, os índices de rotatividade nesses empregos são altos. Ainda assim, seria um erro concluir que o trabalho é ruim. Pesquisas com assistentes sociais no Reino Unido, organizadas pelo centro de estudos Resolution Foundation, revelam o oposto: as pessoas falam sobre o quanto valorizam a responsabilidade, a autonomia e a diferença que fazem na vida dos pacientes.

Uma análise recente dos dados sobre bem-estar da população no Reino Unido mostra que as pessoas em ocupações como “cuidadores” têm os níveis mais altos de sentimento de que o trabalho que fazem na vida vale a pena. O problema é que os salários baixos e a falta de pessoal deixam as pessoas muito cansadas e sobrecarregadas.

Um cuidador veterano contou-me sobre uma colega iniciante que precisou fazer 28 visitas domiciliares em um turno e só conseguiu voltar para a casa e a família à meia-noite. “Ela me ligou e disse: ‘Amo meu trabalho, mas me sinto forçada a conseguir alguma outra coisa’.”

O fenômeno não é exclusivo de empregos na base da escala salarial. Uma psicóloga do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês) enviou-me um e-mail sobre como a falta de recursos torna impossível um bom desempenho em seu trabalho. “Sou inteligente o suficiente para saber que trabalhar mais para preencher lacunas cada vez maiores é insustentável”, escreveu. “Então, até eu, uma funcionária comprometida, que ama seu trabalho, é boa e tem os melhores colegas […] estou planejando minha saída”. Ela disse que esse é um “assunto comum” em sua profissão. “Amamos o que fazemos, mas temos sido ‘quebrados’ pela falta de infraestrutura, investimento e décadas de ‘fazer mais com menos’.”

Baixos salários e falta de recursos não são os únicos culpados. Um péssimo gerente pode, da noite para o dia, tornar ruim um bom trabalho. A burocracia empresarial pode fazer o mesmo, mais lentamente, emaranhando as pessoas em tarefas que as afastam do trabalho que desejam, gostam e foram contratadas para fazer.

Tenho certeza de que algumas pessoas são bem pagas por trabalhos que não gostam e que não consideram importantes. Mas há mais motivos para se preocupar com as pessoas na situação oposta. A boa notícia é que se trata de um problema simples de corrigir.

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