Linguagem neutra começa a ser usada nas empresas

Linguagem neutra começa a ser usada nas empresas

Publicado em 8 de setembro de 2022

Proposta abarca novos pronomes e substitui vogais “o” e “a” por “e”, como em “todes”.

Ao navegar pelo LinkedIn, já é comum encontrar profissionais que, ao lado de seus nomes, mencionam como querem ser tratados. Isso vem colocado entre parênteses, com os pronomes ela/dela, ele/dele, ile /dile. Para alguns, este último pode soar estranho – é o que se chama de linguagem neutra ou não binária, e atende pessoas que não se identificam com os gêneros feminino ou masculino.

“O latim já tinha a linguagem neutra, que foi suprimida quando houve a derivação para o português e outros idiomas”, explica Pri Bertucci, cocriador da linguagem neutra na língua portuguesa, estudioso do assunto há mais de uma década e CEO da Diversity Bbox, especializada em letramento e soluções de diversidade e inclusão.

Pessoa não binária que adota os pronomes ile/dile ou ele/dele, Bertucci explica que a linguagem neutra vem ganhando espaço, inclusive no mundo corporativo, ao lado da linguagem inclusiva – que dá preferência ao uso de, por exemplo, vagas para pessoas engenheiras ao invés de vagas para engenheiros. “Há uma transição gradativa para a linguagem neutra [que substitui “o” e “a” por “e”, “todes”, por exemplo]”, diz. “Mas é mais comum o RH usar aquelas pessoas, e não aquiles [pronome da linguagem neutra], porque algumas palavras ainda soam estranho.” Para Ricardo Sales, da Mais Diversidade, a linguagem neutra é uma forma de visibilizar algumas pautas de gênero e questionar o binarismo de gênero.

Autor do “Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva”, Bertucci vem levando para as empresas o uso da linguagem neutra e afirma que, para facilitar o processo de mudança e adaptação de olhos e ouvidos, sugere justamente uma mistura entre a linguagem neutra e inclusiva, por ser um recurso mais facilmente aceitável. Isso pode ser feito com a substituição de artigos e pronomes que determinam um gênero por palavras neutras: ao invés de “quero propor um almoço para conhecer melhor os meus colegas de trabalho”, usar “quero propor um almoço para conhecer melhor a minha equipe” (linguagem inclusiva) ou, ainda, “quero propor um almoço para conhecer melhor todes com quem trabalho” (neutra).

Luana Gimenez, analista sênior de igualdade em recrutamento para América Latina na Salesforce, diz que a companhia começou, em maio de 2021 no Brasil, a se esforçar intencionalmente no letramento da equipe em relação ao uso de linguagem neutra e inclusiva, para que se torne parte do dia a dia da empresa. “O avanço que nós desejamos na sociedade só é possível se houver intencionalidade e, estruturalmente, ainda há obstáculos para grupos minorizados e sub-representados. A questão da linguagem é parte deles”, explica. Para ela, promover a inclusão através da linguagem é importante, já que ao usar a linguagem neutra ou inclusiva visibilizam-se também outras comunidades. “Existe um esforço genuíno no letramento do nosso time em relação ao uso de linguagem neutra e inclusiva, mas sabemos que estamos só no começo desse trabalho e que ainda há muito a ser feito para que seja de fato internalizado na forma como nos comunicamos diariamente.”

Um movimento que começou nos Estados Unidos [onde o pronome neutro já existe, natural da língua inglesa], mas que temos visto crescer e acompanhar as formas de existir da nossa sociedade.

Além disso, a Salesforce utiliza o pronome de tratamento preferido pela pessoa em suas identificações na empresa, garantindo o uso da linguagem correta, e adota a linguagem neutra intencionalmente nas comunicações que partem dos grupos de diversidade. Ações educacionais voltadas para lideranças e sessões de sensibilização sobre o tema estão na estratégia. “Já notamos a utilização da linguagem neutra de modo espontâneo em algumas das nossas equipes”, comenta Gimenez. “Temos a meta global de que 40% da nossa equipe se identifique como mulheres ou pessoas não binárias até o fim do ano fiscal de 2026.

Na Serasa Experian, o assunto começou a ganhar espaço em junho de 2021. “Acreditamos que a comunicação neutra e inclusiva gera um ambiente cada vez mais respeitoso e funcionários mais engajados”, afirma Giovana Giroto, diretora de marketing e responsabilidade corporativa da companhia. Nesse caminho, toda a diretoria de marketing, comunicação e responsabilidade corporativa teve um workshop para compreender como construir a mensagem da melhor forma. “Além do treinamento com pessoas especialistas no tema de linguagem neutra, disponibilizamos para todos os funcionários e funcionárias um guia prático para comunicação inclusiva e um outro para comunicação não violenta.”

De forma prática, alguns usos já são observados. Na comunicação interna da Serasa Experian e nas redes sociais, a empresa trocou as vogais que definem o gênero das palavras por palavras como “pessoas”, “talentos”, “galera”, “turmas”. “Podemos dizer, ao invés de sejam bem-vindos, que bom que vocês estão aqui”, diz Girotto. “Essas palavras chegam com o objetivo de ter uma abordagem mais inclusiva, representando mulheres, homens e pessoas que não se identificam dentro desse espectro binário”. A executiva lembra que não funciona trocar as vogais por “x” e “@”, como tem sido usado em alguns locais – “todxs” ou “tod@s”. “Esses sistemas são exclusivamente escritos e atrapalham a leitura de pessoas com deficiência visual ou neurodiversas.”

Nai Monteiro, professora de língua portuguesa que se identifica como uma travesti não binária e realiza estudos sobre as interfaces entre linguagem, gênero, sexualidade e educação, mestranda em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Rural de Pernambuco, reforça que os softwares utilizados para leitura por pessoas com deficiência visual não entendem o uso do “x” e da “@” no lugar das vogais – fazendo com que a linguagem não seja inclusiva. Além disso, Monteiro diz preferir o uso da expressão linguagem não binária, ao invés de neutra, pois ela tem uma intencionalidade. “É uma linguagem que se opõe ao masculino genérico, que sabemos não abarca todas as pessoas”, diz.

A linguista vê avanços no uso dos pronomes ile/dile e, principalmente, no uso da linguagem inclusiva (que elimina o gênero da construção das frases). Monteiro pontua, no entanto, que há algumas barreiras, principalmente no campo político. Ela conta que em Pernambuco, onde vive, uma escola havia colocado “todes” na porta da sala, dando as boas vindas às pessoas. A placa teve que ser retirada com a ordem de uma representante política local.

Luiz Carlos Schwindt, professor do departamento de linguística, filosofia e teoria literária da UFRGS, e sócio da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), concorda que há muitas formas de incluir por meio da linguagem e que o emprego de um “e” neutro pode ser uma delas. “Mas, isso, na minha opinião, por outro lado, não precisa estar presente em todo o texto ou discurso, e nem provocar concordâncias duplas infinitamente”. Ele acredita que, embora esse movimento seja válido, “não deveria ser um dever e sim uma opção”. “Prescrever usos linguísticos, sejam excludentes ou inclusivos, é sempre algo estranho à ciência”. Até porque, diz Schwindt, são poucas palavras, menos de 5%, sujeitas à essa modificação.

“É uma questão de bom senso, não é possível fazer uma regra geral”, avalia Anna Christina Bentes da Silva, professora livre docente da Unicamp, atuando em sociolinguística e linguística textual. “São certos grupos sociais que estão debatendo e incorporando essa discussão, enquanto outros grupos são refratários, e as empresas acham que usar essa mudança na linguagem melhora a imagem delas. Mas elas resolveram o problema de equidade? De salários? De ascensão nas carreiras a todos os grupos e minorias?”, questiona.

Bentes da Silva, que escreveu recentemente um artigo para o livro “Linguagem neutra: língua e gênero em debate” (Editora Parábola), defende que, em nome da inclusão, a modificação deveria ser pontual: em interações com pessoas não binárias, em mensagens de boas-vindas, na hora de se dirigir, por escrito, a uma equipe ou grupo de alunos, em uma etapa de seleção dependendo de quem se quer atrair. “Temos um problema de letramento no Brasil, de escrita, de saber se comunicar por escrito, imagina se ficarmos pensando na concordância de gênero? Como linguista, digo: não está errado fazer, é movimento social, mas você vai precisar fazer de forma estratégica”.

Fonte: Valor Econômico
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