13 mar MEI domina abertura de empresas e sinaliza distorção do emprego
MEI domina abertura de empresas e sinaliza distorção do emprego
Pesquisadores do FGV Ibre dizem que situação indica não a formalização de empreendedor, mas alternativa subsidiada ao mercado de trabalho.
Considerado importante preditor do dinamismo da economia e da geração de empregos, a abertura de empresas no país experimentou uma disparada nos últimos 15 anos, de 750,2 mil empresas em 2009 para 3,9 milhões em 2023. A evolução, porém, é explicada quase que inteiramente pela criação de novos microempreendedores individuais (MEIs). A participação dos MEIs no total de empresas abertas passou de 8,4% há 15 anos para 74,6% em 2023, aumento considerado “surpreendente”.
O dado preocupa porque há indícios de que, ao contrário da ideia inicial na criação do MEI, o fenômeno não reflete a formalização de pequenos empreendedores, resulta em forte custo em termos de renúncia tributária e tem contribuído para introduzir distorções no mercado de trabalho.
Dados organizados pela economista Janaína Feijó, em conjunto com Silvia Matos, Fernando Veloso, Fernando de Holanda Barbosa Filho e Paulo Peruchetti, todos pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), mostram que a criação anual de MEIs foi de 63 mil em 2009 e passou a casa do primeiro milhão já em 2013, com aumento gradativo, atingindo 2,4 milhões em 2019. Houve um pico em 2021, com 3 milhões de novos MEIs, atribuído ao choque da pandemia de covid-19, e em 2022 e 2023 houve estabilização perto da casa dos 2,9 milhões.
Já a criação dos demais tipos de empresas cresceu bem mais lentamente. De 2009 a 2020 as demais naturezas jurídicas variaram de 687 mil a 822 mil aberturas anuais. Em 2021 houve um pico de quase 1 milhão. O número ficou ao redor de 980 mil anuais nos dois anos seguintes.
Feijó lembra que em 2021, como reflexo da pandemia, houve um pico na criação de MEIs. “Isso aconteceu porque muitos perderam seus empregos e vislumbraram em novos negócios uma forma de se manter ativos ou porque identificaram oportunidades devido a novas demandas.” Mas o fato, ressalta, é que o MEI se tornou no decorrer do tempo muito representativo em relação às outras naturezas jurídicas. “É surpreendente a grande participação dos MEIs no número anual de empresas geradas. Isso mostra que a dinâmica das novas empresas no Brasil vem puxada majoritariamente pela dinâmica dos MEIs”, diz Feijó. O fenômeno dos MEIs é o tema da Carta do Ibre de março, em artigo assinado por Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre.
Criado em 2008 pela Lei Complementar 128, o MEI foi proposto como um programa em que trabalhadores por conta própria poderiam se formalizar e se inscrever no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). O MEI tem baixo custo mensal de tributos, inclusive para contribuição ao INSS, e conta com cobertura previdenciária, limitada a um salário mínimo, que inclui, entre outros, aposentadoria, salário-maternidade e auxílio-doença.
Feijó destaca que mais da metade – 51,4 % – dos 11,7 milhões de estoque de MEIs ativos no ano passado se concentra em 20 atividades econômicas, dentre total de 440 áreas de atuação possíveis. Há forte concentração de MEIs nas atividades de cabeleireiros e manicures (6,5% do total), comércio varejista de vestuário e acessórios (6,2%), promoção de vendas (4,4%) e obras de alvenaria (4,1%). Os dados foram retirados pelos pesquisadores do Mapa das Empresas, que tem dados do governo federal.
“Considerando que o MEI é uma empresa e que empresas impactam positivamente o desenvolvimento de uma região e da sociedade, a atividade que os microempreendedores desenvolvem é importante. Mas, ao olhar as atividades nas quais os MEIs atuam, observamos que elas não têm valor agregado tão alto”, diz Feijó. Considerando o estoque de empresas ativas ao fim de 2023, os MEIs se concentram no Sudeste e Sul, regiões nas quais estão 51,8% e 18,2%, respectivamente, dessas empresas. Em São Paulo são 27,9%, segundo o Mapa das Empresas.
Cruzamento de dados do IBGE e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) organizado por Matos e Feijó mostra que, do estoque de 13,19 milhões de MEIs existentes no Brasil em 2021, 70% tiveram algum tipo de vínculo formal de emprego no período de 2009 a 2021. O dado do IBGE de estoques de MEIs é mais alto que o do Mapa das Empresas porque considera o total de MEIs, e não só os ativos.
Dentro dos 70% que tiveram carteira de trabalho assinada, os dados da Rais cruzados com os do IBGE mostram que 47,6% dos MEIs são brancos, em taxa maior que a dos 43,5% da população que se declararam brancos no Censo de 2022. Além disso, os dados mostram que, ainda dentro do universo dos 70% que haviam tido emprego formal, 75,9% completaram ao menos o ensino médio.
Ainda que não digam respeito à totalidade dos MEIS, mas a 70% do estoque em 2021, os dados chamam a atenção por mostrar perfil com nível de escolaridade maior que a média da população ocupada, destaca Veloso. Combinando o dado de escolaridade com outros indicando perfil do MEI predominantemente masculino, branco e concentrado no Sudeste, além de majoritariamente vindo de emprego formal em seu histórico de trabalho, “não é muito difícil inferir que esse perfil não se coaduna muito com o alvo que se imagina ser aquele buscado pela criação do programa, de trabalhadores autônomos de baixa renda do setor informal”, diz a Carta do Ibre.
A pesquisa também se debruçou nos 2,9 milhões de MEIs criados em 2021, segundo dados do IBGE. Nesse universo de MEIs, 76,1% tiveram carteira de trabalho assinada. Essa taxa, destaca Veloso, é maior do que a de 70% do estoque em 2021, o que parece indicar aumento relativo dos que tiveram emprego formal anterior. Os dados do IBGE novamente cruzados com os da Rais permitem ver que 63% dos MEIs criados em 2021 foram desligados anteriormente de seus empregos formais. Desse universo de desligados, 62,2% foram demissões por iniciativa do empregador ou por justa causa. Apenas 22,6% dos desligamentos foram a pedido do empregado.
“Talvez isso não caracterize vontade de empreender, mas sim a migração para o MEI de pessoas que perderam emprego. Ainda que o desejo de ter um negócio possa ter sido descoberto depois, essa talvez não tenha sido a primeira opção”, aponta Feijó.
Matos lembra que é preciso cautela ao olhar os dados de 2021, já que esse foi um ano de pico da criação de MEIs, como possível reflexo do impacto da pandemia na economia.
“É preciso preparar os MEIs para empreender e para que as empresas cresçam”
De qualquer forma, diz Feijó, o conjunto de dados revela que os MEIs se tornaram de fato representativos e por isso é preciso pensar em estratégias para tornar esse tipo de empresa mais eficiente. Para fomentar os pequenos negócios e o dinamismo da economia, defende, o setor público poderia se concentrar em mitigar falhas de mercado que dificultam o empreendedorismo em vez de investir recursos em políticas públicas que tendem a ser menos efetivas, o que inclui isenções fiscais e subsídios. Ela cita quatro eixos para possíveis ações: desburocratização do ambiente de negócios, preparação dos futuros empreendedores, maior suporte à capacitação dos microempreendedores e disseminação da cultura e dos benefícios de se ter o próprio negócio.
Na formação de futuros empreendedores, diz Feijó, há boas iniciativas, como cursos oferecidos pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Portal do Empreendedor mantido pelo governo federal. Mas Feijó lembra que levantamento do próprio Sebrae mostra que 60% dos MEIs não acessam o portal com frequência. Peruchetti destaca que esse mesmo levantamento mostrou que, entre as necessidades de capacitação apontadas pelos microempreendedores, uma delas era relacionada a propaganda e marketing e uso de redes sociais para essas estratégias. “Isso mostra que há demanda para essa capacitação”, avalia ele.
“É preciso preparar os MEIs para empreender e para que as empresas cresçam. Mas a preocupação do Congresso não parece ir nessa direção”, diz Veloso. Ele cita o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2021, que propõe aumentar o limite de faturamento atual do MEI de R$ 81 mil anuais para a faixa de R$ 144,9 mil, incluindo possibilidade de contratar até dois funcionários. “A preocupação é de aumentar o teto de faturamento e os subsídios, o que não parece ser o foco correto. Isso deve atrair mais esse perfil de pessoas que não são empreendedoras quando o objetivo deveria ser levar mais capacitação.”
Barbosa Filho avalia que o aumento de limite pode trazer mais distorções. “Aparentemente se aumentar o limite vai se estimular a pejotização. A manicure e a pedicure, em geral, eram antigamente empregadas e agora eles são MEIs, que ‘alugam’ a cadeira no salão para trabalhar. Isso afeta diretamente a produtividade. Quando a grande maioria das aberturas das empresas é MEI, veremos a produtividade média caindo. E essa empresa adicional, querendo ou não, está tirando recursos de muitas empresas que tinham possibilidade de crescer. Começamos a gerar problemas adicionais. Criar uma cultura empreendedora é muito mais do que criar um nomezinho pelo qual alguém pode se auto denominar empreendedor.”
Sempre que se tenta corrigir coisas complicadas com “bala de prata” há efeitos colaterais, diz Barbosa Filho. “É possível corrigir isso, mas não é fácil, já há uma dinâmica perversa. O primeiro passo é não deixar elevar o limite de faturamento. O primeiro passo para sair do poço é parar de cavar e depois se pensa como fazer a escadinha.”
O problema, diz o economista, não está no movimento cíclico no qual o MEI é um colchão em momentos ruins para o emprego formal. “O impacto negativo é o estrutural, no qual a pessoa é pejotizada. Ela está no mesmo emprego, no mesmo lugar, mas o seu tipo de contrato muda para se pagar menos tributos, o que não é o objetivo do programa. O MEI foi desenhado para uma finalidade e está se aproveitando dele para outra, distorcendo o objetivo inicial.”
Matos lembra que a capacitação do MEI é importante, mas essa agenda é “muito difícil” sem a agenda da desoneração da contribuição previdenciária ao menos do primeiro salário, o que inclui debate sobre o custo fiscal da medida. O crescimento dos MEIs, diz, mostram que se busca “fugir do pagamento formal, que é muito caro”. “Com o aumento real do salário mínimo essas distorções aumentam mais ainda e a pressão para o aumento de limite [de faturamento anual dos MEIs] entra nesse contexto bem distorcido.”
Para Schymura, um dos problemas em um país com tributação muito elevada é que é preciso ter muito cuidado com todos os mecanismos, porque tudo pode implicar ganho tributário ou vantagens. “Se a elisão fiscal não é uma vantagem, a pessoa não se chateará tentando criar um mecanismo para fugir do sistema tributário que seria o mais correto. Mas quando as vantagens de um programa são grandes é preciso tomar todos os cuidados possíveis para não deixar nenhuma porta aberta.”
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