Mulher, trabalho e Direito

Mulher, trabalho e Direito

Publicado em 28 de abril de 2025
Por Maria Teresa Vieira da Silva

A análise do processo histórico de inserção das mulheres no trabalho é fundamental para que se compreenda o contexto da atual configuração do mercado profissional feminino.

As mulheres nunca foram alheias ao trabalho na marcha evolutiva da humanidade: desde os primórdios elas contribuíram de forma considerável para a subsistência de suas famílias, para a geração de riqueza e para o progresso da sociedade.

Conquanto desde a antiguidade a divisão social do trabalho tenha se dado de acordo com o sexo das pessoas, tendo por fundamento legitimador justificativas de ordem biológica — a chamada divisão sexual do trabalho —, o fato é que as mulheres sempre desempenharam ofícios os mais variados, mesmo aqueles que exigiam força e esforço físicos, quando isso se afigurou conveniente à lógica capitalista.

Com o tempo, após o surgimento da luta feminista e de revoluções culturais, vemos que a divisão sexual do trabalho deixou de ser encarada como um processo natural e passou a representar grave assimetria entre homens e mulheres nas relações de trabalho.

E desde então as mulheres acumulam atividades dentro e fora de casa.

No Brasil, desde a época colonial as mulheres laboravam, especialmente as brancas de classe econômica baixa e as pretas escravizadas ou não.

Impende ressaltar, por oportuno, que as pretas escravizadas, não somente as alforriadas, mas também as chamadas “escravas de ganho” – que eram autorizadas por seus proprietários a trabalhar em troca de lhes repassar parte dos lucros, trabalhavam como pequenas agricultoras, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, tintureiras, quitandeiras, padeiras – e padeiras que faziam greve quando o preço do pão não lhes interessava (1).

Do mesmo modo, no início do século 18, havia mulheres proprietárias de pequenas casas de comércios, sobretudo nas estradas, oferecendo pouso para os viajantes (tropeiros, cavaleiros, levas de escravos comprados no litoral), além de mulheres fazendeiras (tanto pretas forras, quanto brancas, viúvas de senhores de engenho, numa época em que era comum mulheres muito jovens casarem-se com homens mais velhos, que logo morriam e legavam suas propriedades às jovens viúvas) (2).

Há estudos que retratam que no final do referido século, a segunda camada mais rica da Capitania de Minas Gerais, depois dos homens brancos, era constituída por mulheres pretas e pardas forras, que dominavam habilmente o comércio a varejo e que, nessa condição, negociavam não somente com o litoral, Rio de Janeiro e Salvador, mas com toda a Europa (3).

Nessa época, os direitos das mulheres já estavam sendo objeto de estudo por escritoras como Mary Wollstonecraft, que publicou, em 1792, um dos primeiros tratados feministas, “A Vindication of the Rights of Woman”, por intermédio do qual ela preconizava a igualdade de gênero.

No Brasil, a teoria propugnada por Mary Wollstonecraft chegou até nós pela educadora e escritora Nísia Floresta, que desafiou a sociedade patriarcal brasileira ao publicar o livro “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, com base nos escritos da feminista inglesa.

Mais à frente, com a Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século 18, a mão de obra feminina foi deslocada das economias agrícola e artesanal para dentro das fábricas, o que tratou de definir substancialmente os papéis sociais de homens, mulheres e crianças.

Nesse período, o trabalho da mulher na operação de máquinas foi largamente utilizado, notadamente porque ela aceitava receber salários inferiores aos dos homens, eis que o trabalho feminino era visto como menos importante do que o masculino, ostentando, pois, menor valor.

Além do baixo salário, as operárias eram obrigadas a lidar com uma carga de trabalho extenuante, cerca de 16 horas de jornada diária, com apenas 30 minutos de pausa para o almoço, e, mais, com a total ausência de direitos relativos à saúde, à segurança e à maternidade.

O resultado desse cenário foi um enorme número de doenças ocupacionais, acidentes de trabalho, mutilações e mortes de mulheres.

Não fosse o bastante a exploração da mão de obra feminina nas fábricas nesse período, as mulheres continuaram com o encargo de administrar seus lares, cuidando das tarefas domésticas, do marido e dos filhos, cumprindo, assim, dupla jornada de trabalho.

Destarte, no bojo desse contexto histórico começa a surgir, no século 19, avançando até o século 20, a primeira onda do feminismo, estampando a bandeira da luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, especialmente no que toca ao direito ao voto.

O sobredito movimento tinha como centralidade a discussão do direito ao sufrágio, mas não somente; paralelamente a isso, também reivindicava, por via reflexa, a igualdade entre homens e mulheres no trabalho e o acesso igualitário à educação.

Assim, à margem da pauta preponderante da primeira onda feminista, as mulheres operárias se organizavam em sindicatos e associações no escopo de pleitear melhores condições de trabalho.

Remontam dessa época as célebres reflexões de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai sobre a dupla opressão imposta às operárias e, mais, sobre seu papel no capitalismo.

E nessa conjuntura de luta feminina começam a aparecer em alguns países como Inglaterra, Alemanha e França, leis de proteção ao trabalho da mulher.

Guerras e direitos trabalhistas

Outro marco histórico da inclusão da mulher no mercado de trabalho foram as Grandes Guerras Mundiais (1914/1918 e 1939/1945), uma vez que a integração dos homens nas frentes de batalha redundou na necessidade de assunção, por parte das mulheres, dos negócios da família.

Outrossim, as mulheres foram chamadas a ocupar os postos dos homens em fábricas, estabelecimentos comerciais e escritórios, e, mais, a atuar como enfermeiras nos fronts de batalha.

Como se vê, a incorporação efetiva da mulher ao mercado de trabalho após as grandes guerras decorreu, menos do reconhecimento de seu direito ao trabalho, do que em virtude da vacância dos postos, frente, inicialmente, ao alistamento dos homens para o conflito, e, posteriormente, em vista dos inúmeros mortos e incapacitados entre 18 e 50 anos.

Em outras palavras, “(…) a inserção das mulheres no mercado de trabalho no Brasil nesse período não significou a conquista de espaço entre homens e mulheres neste cenário, pelo contrário, as mulheres eram vistas como uma “reserva de mão de obra” necessária à acumulação do capital, o que confirmava a vulnerabilidade de sua mão de obra, articulada ao mercado de trabalho durante os períodos de expansão econômica e expulsas nos momentos de crise (4).

No mesmo diapasão, temos que a vitória das sufragistas inglesas tomou espaço porque a Inglaterra necessitava da força de trabalho feminina para se reconstruir economicamente, sendo essa a circunstância decisiva para que à mulher fosse reconhecido o direito de votar e de ser votada.

Na esteira do direito ao voto feminino, os direitos trabalhistas das mulheres passam a ocupar o centro do debate.

Nessa linha, a Constituição de 1934 consagra, pela primeira vez na legislação do país, o princípio da igualdade entre os sexos, proibindo a diferença salarial por motivo de gênero para o mesmo trabalho.

A mesma Carta Política proíbe o trabalho de mulheres em locais insalubres e assegura assistência médica e sanitária à gestante, além de descanso antes e depois do parto, por meio da Previdência Social.

Nos anos seguintes, especificamente em 1935 e 1937, o Brasil ratificou as Convenções 03 e 04 da Organização Internacional do Trabalho, organismo criado em 1919 pela Conferência da Paz, assinada em Versalhes, logo após a 1ª Guerra Mundial, com o escopo de promover a igualdade das condições de trabalho no mundo. As mencionadas Convenções tratavam da proteção à maternidade (licença remunerada de seis semanas antes e seis semanas após o parto, intervalos para amamentação, proibição de dispensa da empregada durante a gravidez e na licença maternidade), bem como da proibição do trabalho noturno de mulheres.

Contudo, a Constituição de 1937 não repisou o princípio da igualdade salarial em seu texto.

Tal omissão abriu brecha para que em 1940 fosse editado o Decreto-lei n° 2.548, que permitia que a mulher recebesse salário inferior ao homem em até 10%, ainda que desempenhasse a mesma função.

Aqui se vê o direito da mulher retrocedendo, assim como tem sido o caminhar dos direitos humanos em geral no mundo, tal qual explica a constitucionalista Flávia Piovesan:

“(…) não há régua capaz de mensurar uma linearidade dos avanços porque a história dos Direitos Humanos é marcada por luzes e sombras, avanços e recuos, mas não há Direitos Humanos sem lutas emancipatórias, que se fazem cada vez mais urgentes” (entrevista disponível aqui).

Mais à frente, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º/05/1943), compilou direitos já assegurados às trabalhadoras por leis esparsas (licença maternidade, vedação ao trabalho noturno, limite de peso a ser carregado, etc), mas seu grande mérito foi enunciar que:

“A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo” (artigo 5º).

Cenário externo e a Constituição de 1988

No que tange ao Direito Internacional, temos a Carta das Nações Unidas, de 1945, como um dos primeiros tratados a declarar a igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim registrando:

“NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, DETERMINAMOS para salvar as gerações seguintes do flagelo da guerra, que por duas vezes em nossas vidas trouxe tristeza incalculável para a humanidade, e reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres e de nações grandes e pequenas, e estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes dos tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e para promover o progresso social e melhores padrões de vida em maior liberdade (…)”.

Posteriormente, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos explicita que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.

Em 1951, a OIT aprova a Recomendação n° 90, que trata da igualdade salarial entre os gêneros.

No âmbito interno, é publicada em 27/8/1962 a Lei n° 4.212/62, o chamado “Estatuto da Mulher Casada”, que, dentre outras providências, reconheceu o direito da mulher de trabalhar sem a necessidade da autorização do marido.

A seu turno, em 1979, a Assembleia Geral da ONU aprova a “Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, a qual somente passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro em 2002, quando da sua ratificação.

Mas o marco jurídico mais importante atinente ao princípio da igualdade entre homens e mulheres no Brasil foi a Constituição de 1988.

A “Constituição Cidadã” traz em seu bojo os reflexos dos anseios da sociedade brasileira no que toca às profundas transformações sociais ocorridas a partir da segunda metade do século 20.

Com o novo ordenamento constitucional, suplanta-se o paradigma imperativo vigente, que legitimava a estruturação social patriarcal e marital, e, por decorrência, a desigualdade formal e material de gênero.

Com essa Carta, inaugura-se uma nova ideologia: a de igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, seja na vida civil, seja no trabalho, ou, ainda, na família. Não há mais o chefe da sociedade conjugal. Não se justificam mais os privilégios legais conferidos aos homens.

Décadas após a Constituição, o que se percebe no Brasil é uma grande metamorfose nas relações de trabalho entre homens e mulheres.

Hoje é significativa e expressiva a participação da mulher em mercados antes de ocupação predominantemente masculina, como a engenharia, a aviação, a mecânica, as forças armadas.

Mas ainda não é suficiente.

Igualdade material ainda pende de concretização

As mulheres ainda ganham menos que os homens na maioria das carreiras privadas, ainda são minoria nas cadeiras legislativas — em que pese a existência de cotas eleitorais-, ainda são, na sua maioria, socialmente responsáveis pelas atividades domésticas e no cuidado com os filhos, desempenhando, assim, jornada dupla, quiçá tripla, quando pretendem estudar para galgar outros degraus em sua profissão.

O legislador ainda reputa os filhos como uma responsabilidade da mulher. Exemplo disso é o auxílio-creche, direito considerado “feminino”, ainda que o filho, obviamente, seja do casal, e não apenas da mulher.

E é por isso que devemos nos engajar na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, notadamente no que assenta o Objetivo n° 5, qual seja, o de “adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas, em todos os níveis”, dentre outras metas.

Acresce-se a isso a necessidade da implementação de políticas específicas de inserção no mercado de trabalho de mulheres que ostentem um ou mais eixos de vulnerabilidade, como mulheres pretas, mulheres indígenas, mulheres com alguma deficiência, mulheres LGBTQIAPN+ e mulheres pobres.

Deste modo, e já à guisa de conclusão, consigne-se que a igualdade de gênero no ambiente de trabalho deve ser perseguida, não somente porque as mulheres demonstram competência, comprometimento e dedicação em suas jornadas (no mais das vezes, triplas), mas porque se afigura um direito humano fundamental, protegido pela Constituição Federal e cristalizado nos princípios da igualdade entre homens e mulheres, da proteção do trabalho da mulher e, notadamente, o da dignidade humana, base de um mundo mais fraterno, democrático e sustentável.


Referências

(1) PRIORE, Mary Del. “História das mulheres no Brasil”. São Paulo: Editora Contexto, 2000)

(2) Ibidem

(3) FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras – Riqueza e estigma social”, in Revista Tempo. Rio de Janeiro. n. 9, 2000)

(4) HIRATA, Helena. “Nova divisão Sexual do Trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade”, São Paulo: Bom tempo Editorial, 2002, apud Iana dos Santos Vasconcelos, in “MULHER E MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL: NOTAS DE UMA HISTÓRIA EM ANDAMENTO”, disponível em https://revista.ufrr.br/examapaku/article/download/1497/1086).

(5) PIOVESAN, Flávia. Entrevista disponível em http://hesketh.com.br/newsletters/newsletter08/page07.html).

Fonte: Consultor Jurídico
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