01 ago Multa do artigo 477 da CLT à luz da nova tese vinculante do TST
Multa do artigo 477 da CLT à luz da nova tese vinculante do TST
No ordenamento brasileiro, o contrato de trabalho não se exaure no instante da extinção do vínculo e continua irradiando efeitos jurídicos relevantes que demandam cumprimento imediato. A ruptura do pacto laboral, seja por iniciativa patronal, por ato do empregado ou por razões atribuídas à estrutura do contrato, aciona, de forma automática, um dever jurídico objetivo de liquidação tempestiva e exata das obrigações remanescentes.
Esse é o escopo normativo do artigo 477, § 6º da Consolidação das Leis do Trabalho, que impõe ao empregador a obrigação de quitar integralmente as verbas rescisórias e entregar os documentos pertinentes no prazo máximo de dez dias, contados do término do contrato ou da comunicação da dispensa, conforme o caso.
O comando é claro, cogente e inegociável, sendo certo que a inobservância dessa obrigação faz incidir, de forma automática, a penalidade prevista no seu § 8º, sob a forma de multa equivalente ao salário do empregado:
“§ 8º — A inobservância do disposto no § 6º deste artigo sujeitará o infrator à multa no valor equivalente ao salário do empregado, devidamente corrigido, em favor deste, salvo quando, comprovadamente, o trabalhador tiver dado causa à mora.”
Essa penalidade, até recentemente tratada como um mecanismo sancionatório pontual, foi reconfigurada pela jurisprudência contemporânea, que passou a lhe conferir dimensão estrutural. O marco dessa virada hermenêutica é a tese vinculante firmada pelo Tribunal Superior do Trabalho no julgamento do Recurso Repetitivo RR 11070-70.2023.5.03.0043, o qual redefiniu de maneira significativa a base de cálculo da sanção.
Sanção legal e responsabilidade pós-contratual objetiva
No contexto das obrigações decorrentes da extinção do contrato de trabalho, a multa prevista no artigo 477, § 8º da CLT não se confunde com penalidades contratuais convencionais, tampouco com indenizações pautadas na apuração de prejuízo concreto. Trata-se de uma sanção de ordem pública, imposta de forma objetiva, cujo fato gerador é o descumprimento do prazo legal para pagamento das verbas rescisórias, independentemente da intenção ou justificativa empresarial.
Seu regime jurídico é autônomo: está assentado na premissa de que o encerramento do vínculo laboral não esgota as obrigações do empregador, mas inaugura uma nova fase jurídica, a da liquidação pós-contratual, que exige, para sua regularidade, a adoção de condutas tempestivas e formais. Por isso mesmo, o dever de quitação das verbas rescisórias dentro do prazo legal não é facultativo, tampouco relativizável: é um comando imperativo do ordenamento jurídico, cuja violação acarreta, ipso iure, consequências patrimoniais.
Nesse cenário, a multa do artigo 477, § 8º deve ser compreendida como instrumento de reforço normativo à rigidez procedimental da extinção contratual, e não como mecanismo de reparação subjetiva.
Vale dizer, o empregador não é penalizado por eventual descuido, mas sim por inadimplência objetiva de um prazo legal específico, inadimplência esta que, em uma estrutura de conformidade mínima, deve ser evitada com planejamento jurídico adequado, controle documental e eficiência operacional.
A dogmática moderna reconhece essa sanção como expressão da responsabilidade pós-contratual objetiva, categoria que descreve os deveres jurídicos persistentes após a ruptura formal do contrato. Tais deveres, embora não derivem mais da prestação de serviços, continuam a exigir do empregador diligência e exatidão quanto à regularização formal da extinção do vínculo.
Portanto, a multa não possui natureza indenizatória, tampouco visa compensar dano específico. Ela atua como instrumento de governança normativa e disciplinamento institucional, reforçando a necessidade de que o encerramento de cada relação de trabalho esteja documentalmente coberto, financeiramente quitado e juridicamente formalizado, sob pena de geração automática de passivo adicional.
Crítica à elasticidade hermenêutica da multa rescisória
A consolidação da tese firmada no Tema 142 pelo Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do Recurso de Revista nº 11070-70.2023.5.03.0043, sob a sistemática dos recursos repetitivos, representa um divisor de águas na interpretação do art. 477, § 8º da CLT.
Embora revestida de nobre propósito funcional, a decisão promove uma reconfiguração do alcance da multa rescisória, expandindo sua base de cálculo para abarcar “todas as parcelas de natureza salarial” devidas no momento do desligamento.
Ao reinterpretar a expressão legal “salário do empregado” à luz do artigo 457 da CLT, o TST desloca a norma de seu eixo semântico original, fundado em clareza objetiva e mensurabilidade imediata, para uma fórmula hermenêutica instável, cujo resultado depende da identificação posterior, casuística e por vezes subjetiva, daquilo que se entender como remuneração devida. Com isso, o que antes se apresentava como sanção vinculada a um dado aritmético preciso passa a depender de operações interpretativas que desafiam a própria segurança jurídica do instituto.
A crítica central que aqui se impõe é de ordem técnico-dogmática: ao ampliar a base de incidência da penalidade sem qualquer baliza normativa explícita, o TST fragiliza o princípio da tipicidade sancionatória e compromete a previsibilidade que deve presidir o regime das obrigações pós-contratuais. A penalidade, que deveria ser a exceção aplicada com estrita observância de seus pressupostos legais, é convertida em mecanismo expansivo de responsabilização empresarial, em franca colisão com os cânones da legalidade estrita.
Em termos empresariais, a consequência é inequívoca: o passivo potencial decorrente da rescisão contratual torna-se imponderável. Empresas que observam rigorosamente os prazos legais e que quitam as verbas rescisórias com base em critérios objetivos veem-se, agora, à mercê de interpretações que podem, a posteriori, considerar insuficiente a base de cálculo adotada — não em razão de inadimplemento, mas de alegada omissão quanto à inclusão de parcelas controvertidas, variáveis ou pontuais.
Sob o ponto de vista da dogmática contratual, a decisão do TST subverte a noção de multa como consequência jurídica de descumprimento pontual e mensurável. A sanção passa a incorporar, em sua fórmula de cálculo, um universo de componentes cuja natureza pode ser objeto de controvérsia, como prêmios, gratificações condicionadas, adicionais vinculados a circunstâncias transitórias e até mesmo parcelas litigiosas, cuja integração à remuneração não está consolidada no momento da rescisão.
Não se trata de negar o papel dissuasório da multa, tampouco de minimizar sua função normativa. Trata-se de preservar a racionalidade e o equilíbrio do sistema jurídico, especialmente diante da complexidade crescente dos arranjos remuneratórios nas relações de trabalho contemporâneas. Ao afastar-se de critérios claros e previsíveis, a tese vinculante cria um ambiente de insegurança incompatível com os deveres de compliance que se exigem do setor produtivo nacional.
A teleologia jurídica do artigo 477, § 8º da CLT jamais foi a de penalizar o cumprimento tempestivo de obrigações corretamente calculadas com base nos registros contratuais. A norma visa coibir a mora injustificada, e não fomentar um campo de presunções amplificadas sobre aquilo que “deveria” ter sido pago, ainda que a empresa tenha quitado tudo o que era objetivamente exigível.
A crítica, portanto, é mais estrutural do que circunstancial. A jurisprudência que pretenda reinterpretar institutos sancionatórios deve fazê-lo com máxima contenção, sob pena de converter o direito do trabalho em território de incerteza punitiva. A ampliação da base de cálculo, sem critérios técnicos, contábeis ou contratuais definidos, faz da multa um instrumento de ativismo judicial, e não de racionalidade normativa.
Do ponto de vista da governança empresarial, impõe-se uma readequação do protocolo rescisório: revisão dos instrumentos contratuais, registro detalhado de parcelas variáveis, classificação minuciosa dos componentes salariais e fortalecimento das práticas de formalização documental. Mas, ainda assim, permanecerá o risco de que a interpretação dominante continue a se afastar da realidade do vínculo e da literalidade da norma, transformando a multa em um passivo arbitrário, e não em uma decorrência legítima de inadimplemento objetivo.
A tese vinculante, tal como construída, exige não apenas atenção prática, mas resistência crítica. Se a estabilidade das relações de trabalho pressupõe clareza, previsibilidade e proporcionalidade, não se pode admitir que um dispositivo sancionatório seja elastecido a ponto de comprometer a função mais essencial da norma: a de permitir que o sujeito jurídico saiba, de antemão, quando e quanto deve pagar.
Iimpacto nas hipóteses de rescisão indireta, reconhecimento judicial de vínculo e paradigma da formalização como garantia
O entendimento do TST sobre a multa do artigo 477 ganha contornos ainda mais significativos quando confrontado com dois desdobramentos jurisprudenciais de impacto direto sobre a prática empresarial: a aplicação da multa em hipóteses de rescisão indireta, conforme fixado no Tema 52 (IRR-20813-15.2017.5.04.0026), e sua incidência em situações de reconhecimento judicial do vínculo empregatício.
Em ambos os casos, o que se observa é a consolidação de uma lógica jurídica que converte a ausência de formalização adequada ou a litigiosidade da relação em fator de risco objetivo, desonerando o trabalhador da prova da mora e presumindo, como regra, a responsabilidade empresarial.
A mensagem é clara: relações informais, vínculos não documentados ou rescisões sem planejamento jurídico estruturado não são mais tolerados sob a ótica do direito do trabalho contemporâneo. O dever de quitação tempestiva das verbas rescisórias subsiste, mesmo quando a existência do vínculo ou a modalidade da rescisão dependem de reconhecimento judicial posterior.
Essa linha interpretativa consolida o paradigma da responsabilidade pós-contratual como um dever jurídico autônomo, desvinculado da mera formalização contratual. Em termos práticos, significa que a empresa que se omite na regularização prévia da relação de trabalho ou que negligencia registros formais assume, de antemão, o risco da sanção, ainda que venha a discutir, em Juízo, a validade ou existência da relação.
É nesse ponto que o direito do trabalho deixa de ser um mero campo de obrigações formais e passa a exigir maturidade institucional: não basta pagar, é preciso provar que se pagou tempestivamente e com base em critérios tecnicamente sustentáveis. O ônus da precaução documental migra do campo da prudência para o da exigibilidade legal.
Da sanção à governança
A tese firmada no Tema 142 do TST não se limita à reinterpretação de uma regra legal. Ela inaugura um novo paradigma de responsabilidade jurídica sobre a etapa mais sensível da relação de trabalho: o encerramento do vínculo. Ao expandir a base de incidência da sanção e consolidar sua aplicação em contextos de rescisão indireta e reconhecimento judicial de vínculo, o Judiciário impõe às empresas um dever de vigilância técnica e documental em patamar inédito.
A multa do artigo 477 da CLT deixa de ser mero apêndice do encerramento contratual. Torna-se índice da maturidade jurídica da organização. A empresa que negligencia registros, formalização e prazos assume, objetivamente, o risco de responsabilização patrimonial severa, independentemente de dolo ou culpa.
Nesse novo cenário, não há mais espaço para amadorismo. A liquidação pós-vínculo passa a integrar o núcleo de governança trabalhista, ao lado da contratação, da remuneração e da gestão de jornada. Trata-se de uma nova fase do direito do trabalho, em que o rigor procedimental e a prova pré-constituída se tornam a única blindagem possível contra a erosão jurídica dos desligamentos.
Empresas conscientes não apenas se adaptam. Antecipam-se. E nessa nova lógica de responsabilização objetiva e sanção ampliada, o verdadeiro diferencial competitivo será a capacidade de demonstrar, documentalmente, o cumprimento rigoroso da legalidade, antes que o ônus da prova lhes seja imputado pelo Judiciário.
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