05 jun Precisamos falar sobre a Justiça do Trabalho: uma relação conflituosa a partir do STF
Precisamos falar sobre a Justiça do Trabalho: uma relação conflituosa a partir do STF
Assim como no perturbador filme Precisamos Falar Sobre o Kevin, no qual uma mãe enfrenta a difícil realidade de seu filho com transtorno de conduta, o Brasil precisa discutir urgentemente a tensão crescente entre o Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho. A recente suspensão das ações sobre pejotização pelo ministro Gilmar Mendes é apenas o capítulo mais recente de uma narrativa preocupante.
A Justiça do Trabalho, instituição fundamental para a proteção dos direitos trabalhistas, enfrentou nos últimos anos uma série de decisões do STF que parecem sistematicamente enfraquecer sua autoridade e competência. Os atos realizados no Fórum Trabalhista da Barra Funda em São Paulo e em frente ao TRT da 1ª Região no Rio de Janeiro expõem a gravidade dessa situação, trazendo à tona a preocupação da comunidade jurídica trabalhista.
Como na trama cinematográfica lançada em 2011, em que Eva (Tilda Swinton) tenta compreender as ações de seu filho, também precisamos analisar criticamente essa dinâmica institucional antes que as consequências se tornem irreparáveis.
A decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender as ações relacionadas à pejotização representa um ponto crítico nesse relacionamento institucional. A pejotização – prática de contratar trabalhadores como pessoas jurídicas para evitar encargos trabalhistas – é um tema central na proteção dos direitos trabalhistas contemporâneos.
Quando o STF intervém limitando a capacidade da Justiça Especializada de julgar tais casos, provoca-se um desequilíbrio no sistema de proteção social. Ao suspender nacionalmente milhares de processos sobre o tema, o ministro não afeta apenas os casos individuais, mas também coloca em xeque a própria capacidade da Justiça do Trabalho de interpretar a legislação trabalhista, sua razão primordial de existência.
Como no filme de Lynne Ramsay, no qual sinais de alerta são ignorados até que ocorra uma tragédia, ignorar o enfraquecimento progressivo da Justiça Trabalhista pode levar a consequências devastadoras para milhões de trabalhadores brasileiros.
Nos últimos anos, o STF proferiu uma série de decisões que têm progressivamente limitada a esfera de atuação da Justiça do Trabalho:
Julgamento das terceirizações
Em 2018, o STF decidiu pela constitucionalidade irrestrita da terceirização de atividades-fim (ADPF 324 e RE 958.252), contrariando décadas de decisões trabalhistas consolidadas pela Súmula 331 do TST. Essa decisão não apenas liberou a terceirização sem restrições como também desautorizou o entendimento técnico construído pelos tribunais especializados em questões laborais.
A decisão teve impacto devastador nos direitos coletivos e nas condições de trabalho, contribuindo para a precarização das relações laborais e aumentando a desigualdade entre trabalhadores que desempenham as mesmas funções, além de comprometer, potencialmente, a saúde e a segurança no trabalho.
Limitação da ultratividade das normas coletivas
Em 2022, o STF declarou inconstitucional a ultratividade das normas coletivas (ADPF 323), que mantinha cláusulas de acordos coletivos até que novo acordo fosse firmado. Essa decisão desconsiderou o princípio do não-retrocesso social e fragilizou a negociação coletiva como instrumento de pacificação social.
Ao eliminar esse mecanismo de proteção, o STF desestabilizou o equilíbrio nas negociações entre empregadores e sindicatos de trabalhadores, deixando estes últimos em posição ainda mais vulneráveis durante períodos de impasse negocial. A ultratividade — reconhecida até no artigo 114, parágrafo 2º, da Constituição — sempre foi uma salvaguarda de preservação da vigência das normas coletivas, a fim de estimular a negociação.
Contribuição sindical e enfraquecimento sindical
Em 2018, ao julgar a ADI 5.794, o STF validou o fim da contribuição sindical obrigatória, estabelecida pela “Reforma Trabalhista”. Embora tenha sido apresentada como uma modernização, esta decisão teve como consequência direta o enfraquecimento financeiro dos sindicatos, prejudicando sua capacidade de representação e negociação.
A fragilização das entidades sindicais tem impacto direto na capacidade coletiva de resistência dos trabalhadores, especialmente em contextos de crise econômica como o que o Brasil tem enfrentado.
Redução do prazo prescricional para cobrança de valores não depositados no FGTS
Em 2014, o STF, no julgamento do RE nº 709.212 (ARE 709212), com repercussão geral, firmou entendimento de que a cobrança de valores não depositados na conta do FGTS está sujeita à prescrição quinquenal (cinco anos), e não à prescrição trintenária (30 anos). Essa decisão declarou inconstitucionais normas que previam a prescrição trintenária para a cobrança dos depósitos não realizados.
A mudança dificultou o acesso à justiça para aqueles trabalhadores e trabalhadoras que tiveram seus direitos trabalhistas violados há mais tempo, como a não-realização de depósitos no FGTS. Trata-se de mais uma medida de desproteção, diminuindo a possibilidade de cobrar direitos trabalhistas. Além disso, prejudicou os recursos do Fundo, que são destinados para obras de saneamento e construção de moradias populares, atingindo em cheio as populações mais necessitadas.
Mais preocupante que decisões isoladas é a tendência de deslocamento para a Justiça Comum de questões trabalhistas, como nos casos de interferência na interpretação de vínculos trabalhistas dito “modernos” (plataformas digitais) e a recente decisão de suspender as ações sobre pejotização.
Tais fatos interferem diretamente na essência da competência trabalhista: identificar relações de emprego mascaradas e reconhecer o vínculo empregatício, deferindo as verbas trabalhistas correspondentes.
Essa progressiva perda da característica original da Justiça do Trabalho revela um projeto mais amplo de enfraquecimento institucional. Como no filme Precisamos Falar Sobre o Kevin, onde os comportamentos destrutivos do protagonista revelam um plano meticuloso, as sucessivas intervenções do STF parecem seguir um roteiro de esvaziamento progressivo da autoridade da justiça especializada.
Quando o STF altera essa competência especializada sem levar em conta particularidades do Direito do Trabalho, corre-se o risco de destruição de décadas de construção jurisprudencial voltada à proteção do trabalhador. Destaca-se, a propósito, que a atual composição do STF não possui nenhum ministro originário da Justiça do Trabalho e nem sequer da advocacia trabalhista.
É urgente que se estabeleça um diálogo institucional respeitoso entre o STF e a Justiça do Trabalho. A especialização desta última não é um capricho histórico, mas uma necessidade prática diante das particularidades das relações de trabalho e do desequilíbrio de forças entre funcionários e empregados.
No filme, a falta de comunicação efetiva entre mãe e filho amplifica os problemas existentes. De modo semelhante, a ausência de um diálogo que reconheça a expertise e a importância da Justiça do Trabalho apenas intensifica o conflito institucional e prejudica aqueles que mais precisam de proteção.
Assim como Eva precisa confrontar a realidade sobre seu filho para seguir adiante, a comunidade jurídica brasileira precisa enfrentar abertamente essa questão. Precisamos defender a Justiça do Trabalho não por corporativismo, mas pela sua função social essencial na manutenção do equilíbrio nas relações trabalhistas.
A metáfora cinematográfica de Precisamos Falar Sobre o Kevin nos lembra que ignorar problemas não os faz desaparecer — apenas permite que cresçamos até um ponto crítico. A relação entre o STF e a Justiça do Trabalho precisa urgentemente ser rediscutida, com respeito às competências constitucionais de cada instituição.
Os atos realizados em diversas cidades do país, em defesa da Justiça do Trabalho, não são apenas protestos isolados, mas um chamado para que enxerguemos a gravidade da situação e atuemos para preservar uma instituição fundamental para a justiça social no Brasil.
Da mesma forma que ocorre no filme, em que a reflexão sobre os sinais ignorados poderia ter evitado a tragédia final, é hora de a comunidade jurídica e de a sociedade refletirem sobre o que está em jogo: não apenas a autonomia de um ramo do Judiciário, mas todo um sistema de proteção social construído ao longo de décadas.
Enfim, precisamos falar sobre a Justiça do Trabalho antes que seja tarde demais! O enfraquecimento sistemático deste ramo especializado do Judiciário coloca em risco não apenas uma instituição, mas o próprio equilíbrio nas relações entre capital e trabalho, pilar fundamental de qualquer democracia que se pretenda verdadeiramente social.
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