23 jun Sobre a limitação da condenação aos valores atribuídos na petição inicial
Sobre a limitação da condenação aos valores atribuídos na petição inicial
Tenho visto ampla divulgação a decisão do ministro Alexandre de Moraes, proferida em um processo subjetivo, com efeitos interpartes, nos autos da Reclamação (Rcl) nº 79.034 [1], apresentada como “ampla reforma” e “desconstrução” ao entendimento há muitos anos consagrado, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), quando interpretou o artigo 840, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Talvez a intensa divulgação — e a forma como se está tratando o tema, em particular — se justifique para alguns, porque gera engajamento. Mas o que, de fato, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF)?
A controvérsia
O processo judiciário do trabalho foi pensado para ser simples, informal, célere e efetivo — o que, por certo, desagrada muitos, dada a tradição brasileira de não se cumprir nem a legislação nem as decisões judiciais.
A CLT é de 1943. Embora, por lógico, tenha sido alterada ao longo dos anos, o artigo 840 da CLT permaneceu vigendo em sua redação originária, desde a decretação, em 1º/5/1943 [2], e até 10/11/2017, tendo em vista que, no dia seguinte, a norma-regra passou a viger com a redação dada pela chamada reforma trabalhista [3].
Eis a redação originária do art. 840, § 1º, da CLT:
“Sendo escrita, a reclamação deverá conter a designação do Presidente da Junta, ou do juiz de direito a quem for dirigida, a qualificação do reclamante e do reclamado, uma breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante.”
E, a atual redação, modificada pela reforma trabalhista, além de modificar o § 1º, incluiu o § 3º, com hipótese específica de sentença terminativa:
“§ 1º Sendo escrita, a reclamação deverá conter a designação do juízo, a qualificação das partes, a breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante.
(…)
3º Os pedidos que não atendam ao disposto no § 1º deste artigo serão julgados extintos sem resolução do mérito.”
Como se vê, a redação do § 1º — com mera atualização temporal de algumas palavras-chave — permaneceu exatamente a mesma, à exceção do trecho “que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor”.
A exigência de pedido certo e determinado não é nenhuma novidade, porque, desde a decretação da CLT, em 1943, nos casos omissos, o direito processual comum é fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto no que lhe for incompatível [4]. E, já no Código de Processo Civil (CPC) de 1939, previa-se que o pedido deveria ser “certo ou determinado” [5].
A controvérsia se deu com a inclusão do trecho “com indicação de seu valor”.
Falando de forma bem resumida, e para fins didáticos, uma corrente se posicionou pela indicação mera estimativa, dos valores, na petição inicial, cabendo a sua exata definição na sentença de mérito, se proferida de forma líquida [6] ou na fase de liquidação, se proferida de forma ilíquida. [7]
Esta corrente parece adequada ao próprio CPC.
Lembre-se que o CPC de 1973 previa, no artigo 258, que “a toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediato”. Já o CPC atual, de 2015, prevê, no artigo 291, que “a toda causa será atribuído valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediatamente aferível”.
Como bem colocaram Teresa Arruda Alvim et al [8]:
“Trata-se de alteração sutil, mas relevante, pois o legislador lança para o futuro a tarefa de se atribuir valor aos interesses em disputa.”
Porém, há outra corrente, que aplica a literalidade dos artigos 141 e 492 do CPC, devendo o Juízo decidir nos limites propostos pelas partes, inclusive quanto aos valores dispostos na petição inicial (conteúdo econômico), sendo-lhe vedado condenar a parte em quantidade superior.
Entendimento consagrado pelo TST
Já desde o início da reforma trabalhista, quando editou a Resolução nº 221/2018, [9] que aprovou a Instrução Normativa n° 41, “que dispõe sobre as normas da CLT, com as alterações da Lei nº 13.467/2017 e sua aplicação ao processo do trabalho”, o TST firmou, no artiigo 12, § 2º, da Instrução Normativa, que:
“Para fim do que dispõe o art. 840, §§ 1º e 2º, da CLT, o valor da causa será estimado, observando-se, no que couber, o disposto nos arts. 291 a 293 do Código de Processo Civil.”
E, em julgamento paradigmático [10], a Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), responsável pela uniformização da jurisprudência no âmbito do TST [11], em belíssima decisão, decidiu, em suma, que:
“(…) tendo o reclamante apresentado, em sua petição inicial, pedido certo e determinado com indicação de valor – estimado –, por um lado, atende-se à exigência do art. 840, §1º, da CLT. Por outro lado, possibilita ao polo passivo o integral exercício da ampla defesa e do contraditório, assegurados pelo artigo 5º, LV, da CF.”
Mas, então, o que decidiu o STF?
Na dita Rcl nº 79.034, o ministro Alexandre de Moraes cassou decisão do TST que, com base nas normas-princípios do amplo acesso à jurisdição, da dignidade da pessoa humana e da proteção social do trabalho [12], não limitou o valor da condenação (quantum debeatur), naquele caso concreto, aos valores atribuídos na petição inicial (conteúdo econômico), por se tratarem, estes últimos, de mera estimativa.
Na visão do ministro, a decisão violou a cláusula constitucional de reserva de plenário [13], pois, embora não tenha declarado expressamente a inconstitucionalidade do artigo 840, § 1º, da CLT, o TST afastou sua incidência, na parte em que determina a indicação do valor, na petição inicial — supostamente limitativo da condenação. Incidiria, assim, a inteligência da Súmula Vinculante nº 10. [14]
O ministro Gilmar Mendes, dois meses antes, [15] já havia decidido em sentido contrário, embora, dois meses depois, tenha voltado atrás e decidido no mesmo sentido do ministro Alexandre de Moraes. [16]
Tais decisões são inválidas? Ou o STF, de fato, promoveu “ampla reforma” e “desconstrução” ao entendimento há muito consagrado na Justiça do Trabalho?
A resposta, às duas perguntas, é negativa.
Em primeiro lugar, as decisões, obviamente, não são inválidas e merecem todo o respeito e deferência. Mas há de se ter em mente certas diferenças.
Tem efeito vinculante a decisão monocrática de qualquer ministro ou ministra do STF proferida em controle abstrato de normas [17], ou em casos da repercussão geral, [18] a exemplo do Tma nº 1.389, no qual o ministro Gilmar Mendes, monocraticamente, “determinou a suspensão nacional de todos os processos que tratam da licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços”, a falada “pejotização” [19].
Porém, a reclamação constitucional não tem efeito vinculante, porque é um processo subjetivo, com efeitos e vinculação exclusivamente interpartes.
Em segundo lugar, eu localizei pelo menos 91 decisões do STF acerca do artigo 879, § 1º, da CLT. Há dezenas de decisões contrárias ao que foi decidido pelos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, sob diferentes óticas e fundamentos, mas me atenho a uma interessantíssima e recente decisão — de 29/5/2025 —, proferida pela ministra Cármen Lúcia, na Rcl nº 79.711 [20].
Na decisão, a ministra Cármen Lúcia reconhece a importância da reclamação constitucional, como “instrumento constitucional processual posto no sistema como dupla garantia formal da jurisdição”, sendo instituto bifronte, nos seguintes termos:
Em face dos jurisdicionados | Em face do Poder Judiciário |
Em razão da decisão que afronta, fragiliza e retira a plena eficácia da decisão paradigmática | Cuja competência é enfrentada e menosprezada por outros órgãos e tem a autoridade de suas decisões mitigada |
Porém, a ministra foi clara — em mesmo sentido de milhares de outras decisões, em inúmeras reclamações constitucionais, para os mais variados casos: não ocorre violação à Súmula Vinculante nº 10 quando se afasta a aplicação de disposição normativa sem base em fundamentação constitucional — lembremos que a interpretação dada pelo TST, embora trate de normas-princípios, leva em consideração, na interpretação, as normas-regras do CPC.
E foi explícita, na sua decisão, especificamente com relação à decisão proferida pelo ministro Alexandre de Morais, na Rcl nº 79.034, utilizada pela parte reclamante como “paradigma”, em termos que eu considero importantíssimos:
“Na presente ação, a reclamante também invoca como paradigma de descumprimento decisão proferida por este Supremo Tribunal na Reclamação nº 79.[03]4.
A reclamação indicada pela reclamante é processo subjetivo e os efeitos da decisão nela proferida limitam-se às partes que figuraram naquela relação processual. A reclamante não foi parte nesse processo.”
Com todas as letras: não cabe reclamação como paradigma de reclamação, dada a sua condição de processo subjetivo e pela produção de efeitos apenas interpartes.
Assim, a ministra concluiu que a intenção seria de fazer uso da reclamação constitucional como mero sucedâneo recursal, o que não é permitido pela iterativa, atual e notória jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. [21]
Conclusão
É preciso tomar cuidado com a busca pelo engajamento. Numa sociedade hiperconectada, sedenta por (re)conhecer os meandros da ciência jurídica, cada informação, dada por quem detém o conhecimento, deve ser meticulosamente elaborada e revestida de profunda cautela e responsabilidade.
Em verdade, inexiste “ampla reforma” e “desconstrução” ao entendimento há muitos anos consagrado pelo TST, quando interpretou o artigo 840, § 1º, da CLT. Segue sendo nosso norte e paradigma, na Justiça do Trabalho, a Instrução Normativa nº 41/2018.
______________________
[1] STF, Rcl 79034, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Julgamento: 12/05/2025, Publicação: 13/05/2025.
[2] Publicado no Diário Oficial da União de 9.8.1943, retificado pelo Decreto-Lei nº 6.353, de 1944, e pelo Decreto-Lei nº 9.797/1946.
[3] BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Publicado em: 14 jul. 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm. Acesso em: 21 jun. 2025.
[4] Art. 769 da CLT.
[5] Art. 153, caput, do CPC de 1939.
[6] Tema nº 131 do TST (Incidente de Recurso Repetitivo — IRR): “Proferida sentença líquida, impugnações quanto aos critérios de liquidação ou aos valores expressamente fixados deverão ser deduzidas no recurso ordinário interposto à decisão, sob pena de preclusão.”
[7] Art. 879 da CLT: “Sendo ilíquida a sentença exequenda, ordenar-se-á, previamente, a sua liquidação, que poderá ser feita por cálculo, por arbitramento ou por artigos.”
[8] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. 2. ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 529.
[9] TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Instrução normativa n. 41: editada pela Resolução n. 221, de 21 de junho de 2018. Publicado em: 25 jun. 2018. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/138949. Acesso em: 21 jun. 2025.
[10] TST- Emb-RR-555-36.2021.5.09.0024, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 07/12/2023.
[11] Art. 894 da CLT: “No Tribunal Superior do Trabalho cabem embargos, no prazo de 8 (oito) dias: II – das decisões das Turmas que divergirem entre si ou das decisões proferidas pela Seção de Dissídios Individuais, ou contrárias a súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho ou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.” (grifo nosso)
[12] Arts. 1º, III e IV, e 5º, XXXV, da Constituição da República.
[13] Art. 97 da Constituição da República: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”
[14] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula vinculante 10. Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. Publicado em: 27 jun. 2008. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula746/false. Acesso em: 21 jun. 2025.
[15] STF, Rcl 77179, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 21/03/2025, Publicação: 24/03/2025.
[16] STF, Rcl 77179 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 09/06/2025, Publicação: 11/06/2025.
[17] MENDES, Gilmar. O efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos processos de controle abstrato de normas. Revista Jurídica Virtual, Brasília/DF, v. 1, n. 4, ago. 1999.
[18] Art. 1.035, § 5º, do CPC: “Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.”
[19] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF suspende processos em todo o país sobre licitude de contratos de prestação de serviços: ministro Gilmar Mendes determinou a medida após o plenário reconhecer, por maioria, repercussão geral sobre a chamada “pejotização”. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-processos-em-todo-o-pais-sobre-licitude-de-contratos-de-prestacao-de-servicos/. Acesso em: 21 jun. 2025.
[20] STF, Rcl nº 79711, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 20/05/2025, Publicação: 27/05/2025.
[21] E citou, na Rcl nº 79.711, “de que são exemplos: Rcl n. 5.847/PR, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 1º.8.2014; Rcl n. 15.752-AgR/SP, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Plenário, DJe 25.6.2014; Rcl n. 10.766-AgR/DF, Relator o Ministro Celso de Mello, Plenário, DJe 24.6.2014; Rcl n. 16.551-AgR/SP, Relator o Ministro Teori Zavascki, Plenário, DJe 21.3.2014; e Rcl n. 12.692-AgR/DF, Relator o Ministro Luiz Fux, Plenário, DJe 21.3.2014.”
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