STF às turras com o TST: um epílogo

STF às turras com o TST: um epílogo

Publicado em 12 de maio de 2025
Por Hélio Gomes Coelho Júnior

Em 12 de abril, por dez votos a favor e um contra, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela existência de “repercussão geral da matéria constitucional” trazida no caso judicial ARE 1.532.603-PR, no qual se debate a possibilidade de ser ver como emprego e, assim, regidas pela CLT, um sem-número de relações de trabalho que, constitucional, legal ou contratualmente, a repelem. Com a repercussão geral, o STF fixou o Tema 1.389, no qual será apreciada a “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”. De logo, o que for decidido deverá ser observado por todos os tribunais e juízes do país.

Dois dias após a deliberação do plenário, o ministro Gilmar Mendes, como relator do caso e como lhe faculta a lei, determinou a “suspensão” de todos os processos que tramitam no país e que tratem das questões indicadas no sobredito Tema. Estima-se cerca de 300 mil a 350 mil (a conferir, porque tudo conspira para que o número seja o dobro, senão o triplo, e a Justiça do Trabalho ainda não divulgou oficialmente) processos ficarão sobrestados até a decisão definitiva a ser dada no “leading case” paranaense, que daquele monte foi pinçado, e trata de uma reclamação trabalhista de um corretor de seguros que, por sua empresa, celebrou um contrato de franquia, ativando-se assim por cinco anos e, encerrada a relação, foi a uma das Varas do Trabalho de Curitiba, pedir a sua condição de empregado, que a Consolidação das Leis do Trabalho regula; e, assim, receber todos os direitos daí decorrentes.

CLT e a Justiça do Trabalho

A CLT é um Decreto de 1943, assinado por Getúlio Vargas — na sua fase (1937-45) genuína de ditador —, que reuniu a legislação esparsa que tratava da relação patrão e empregado, no ambiente urbano, quando a economia do país, direcionada pelo Estado, estimulava a indústria de base (siderurgia, metalurgia e energia) e, de inhapa, porque era claro o receio de que os trabalhadores e seus movimentos pudessem causar sacolejos sociais e políticos. Basta relembrar que o Decreto-CLT nasceu em meio à segunda conflagração mundial (1939-45) derivada no nazifascismo.

A Justiça do Trabalho veio no texto da Constituição de 1934 (que vigeu por três anos), foi mantida na CF 1937, mas só se materializou efetivamente em 1941, estruturada e ligada ao Poder Executivo, dado que só passou a integrar o Poder Judiciário com a CF de 1946.

As duas, CLT e JT, nascidas nos anos 40 do século passado, foram idealizadas para um modelo de produção-trabalho que, impossível negar, tem pouco com a realidade atual.

O Brasil tem hoje perto de 48 milhões de trabalhadores regidos pela CLT, que se ativam majoritariamente no setor terciário (serviços e comércio) e que têm à disposição uma JT estruturada para atendê-los – composta por um Tribunal Superior, 24 Tribunais Regionais e perto de 1.600 Varas do Trabalho –, onde são despejados milhões de casos ano após ano (em 2024 foram mais de 2,1 milhões de novos processos). O que nela mais se reclama são direitos elementares como aviso prévio, 13º salário, férias, FGTS, horas extras e que tais. O orçamento atual da JT é 23 vezes bilionário.

Dentre os tantos casos, A JT também se ocupa em analisar relações que sequer caberiam a ela conhecer ou admitir; e, menos ainda, ver como de emprego prestações de serviços que leis, nunca declaradas inconstitucionais, dizem que não há. Sem ser exaustivo, algumas delas: corretor de seguros (1964), representante comercial (1965), transportador rodoviário (1984), prestando serviços como pessoas naturais (físicas) e jurídicas, não têm vínculo empregatício. Franqueado (1994) também.

Muitas das leis foram atualizadas, ganharam novos textos, anos após, mas seguem, no particular, repetindo o mesmo: não são empregados. O professor e juiz do trabalho paulista Antônio Lamarca, que chegou a ministro do TST, era claro e objetivo: “não há fraude legal: se o legislador disse que não há relação de emprego, o que se afirme em contrário é contra legem”.  O também professor e juiz do Trabalho baiano Elson Guimarães Gottschalk, então, era cortante, ao citar Lehmann: “ninguém pode exercer um direito em contradição ao seu procedimento anterior”.  No entanto, pululam um sem-número de ações trabalhistas que são acolhidas pela JT, especialmente por Varas e Tribunais do Trabalho e algumas Turmas do TST, que pronunciam como de emprego relações de trabalho que a própria lei que as regulam diz não existir. O STF, então, provocado por reclamações constitucionais, vê-se obrigado a cassar decisões de Tribunais Regionais e Tribunal Superior do Trabalho a toda hora, a todo mês e a todo ano.

Em fecho parcial: prestar serviços formatado como na lei, que os regula, desfrutando (sim), fruindo direta (tal como ajustado) e indiretamente (junto ao fisco, previdência e afins)) do quanto ajustado, para, ao depois, invocar outra condição (a de empregado) é também desprezar o instituto da proibição do “venire contra factum proprium”, que não tolera “…que a parte da relação jurídica contratual adote mais de um padrão de conduta, segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer”, como advertia o professor Regis Fichtner Pereira, no início do século 21 (A Responsabilidade Civil Pré-Contratual, Renovar, 2001).

Terceirização

O embate entre STF e JT ficou muito mais claro (e necessário) quando a Corte Maior desautorizou a Súmula 331 do TST, que não admitia a ampla e irrestrita terceirização, ao criativo argumento de que ela só era possível em “atividade-meio”, mas jamais em “atividade-fim”, conceitos não precisos e não legais, mas deveras criativos, permitindo a cada juiz ou TRT e TST tomá-los sob a sua ótica ou viés.

Pela ADPF 324 (relator: ministro Roberto Barroso, julgamento em 30/8/2018 e acórdão em 6/9/2019), o STF reconheceu a licitude terceirização, pois a “Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização. Todavia, a jurisprudência trabalhista sobre o tema tem sido oscilante e não estabelece critérios e condições claras e objetivas, que permitam sua adoção com segurança. O direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade”.

Na mesma toada, o Supremo, no RE 958.252-MG (relator: ministro Luiz Fux, julgamento também em 30/8/2018 e acórdão em 13/9/2019), ao deitar olhos na Súmula 331 do TST, sob o foco da sua constitucionalidade, “no que concerne à proibição da terceirização de atividades-fim”, foi rigoroso e fixou a tese (Tema 725), assim: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

O STF, por vontade constitucional, tem a primazia (substantivo feminino que significa estar em primeiro lugar, prioridade, preferência) de interpretar a Carta de 1988 e nela estão cravados os princípios da livre iniciativa (artigos 1º, IV, e 170) e da liberdade contratual (artigo 5º, II), que o fez erodir a criatividade do TST, o qual rigorosamente já travava a atividade econômica desde 1986, quando editou a Súmula 256, ao depois reescrita mais “abrandada” como Súmula 331. De 1986 a 2019, ou por mais de três décadas, o país ficou sob o jugo de uma jurisprudência do TST, que foi dada por afrontosa à CF.

Não deve passar despercebida, no Tema 725 acima transcrito, a expressão “ou qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”, pois também aqui cabem microempreendedor individual (MEI), microempresa e empresa de pequeno porte (MPEs), todos regulados por leis complementares (2006 e 2008), inscritos no CNPJ, recolhedores de impostos, alguns partícipes do Simples Nacional, vinculados à Previdência e que assim resolveram se estabelecer e prestar serviços. Sim, por lei, há incentivos àqueles que desejem assim (MEIs e MPEs) atuar no mercado, longe do formato do emprego imaginado pela CLT e JT. Dados indicam que há mais de 21 milhões de CNPJs ativos de MPEs, nelas incluídos os MEIs.

Vale registrar trecho da decisão do ministro relator, quando determinou a “suspensão” dos processos: “… o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”. Com razão, em 2024, os casos trabalhistas, pela primeira vez, superaram os casos civis recebidos pela Suprema Corte.

Resposta para tudo

Aguardemos a decisão do STF no caso judicial ARE 1.532.603-PR, que indicará o norte sobre: a) a competência da Justiça do Trabalho para julgamento das causas em que se discute a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; b) licitude da contratação civil/comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos; e, c) ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante.

Com tal julgamento, certa e definitivamente, ficará proclamado que, sim, há outros modos de trabalhar, seja como pessoa natural (“autônomos”) ou pessoa jurídica (“pejotização”), para além do modelo de emprego. E a decisão que virá, vale repetir, deverá ser observada por todos os tribunais e juízes do país.

Em arremate, como dizia o ex-ministro Ayres Britto: “A Constituição Federal por ser materialmente expandida como nenhuma outra brasileira, tem resposta para tudo que seja importante e diga respeito à vida coletiva, à polis”. Tanto que, como dizia o atual presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso: “A Constituição brasileira só não traz a pessoa amada em três dias”.

Com a primazia da palavra o STF, que dirá o norte, para muito além da pejotização.

1) Em 2017, a CLT experimentou a sua maior revisão (Lei nº 13.467) e ganhou ares de modernidade. O legislador foi além, aproveitou para sepultar uma penca de súmulas criativas do TST, escrevendo na CLT exatamente o contrário do que elas diziam. Basta lembrar uma enterrada, a de nº 277, e que apanhava todos os empregados e empresas do país, ao determinar a vigência de ACTs e CCTs para além do prazo ajustado pelos contratantes. Criaram os juízes a “ultratividade”, que foi repudiada expressamente (ver parágrafo 3º do artigo 614 da CLT) pela reforma trabalhista.

Fonte: Consultor Jurídico
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