17 jun Tema nº 1.389: o debate quanto à licitude da ‘pejotização’
Tema nº 1.389: o debate quanto à licitude da ‘pejotização’
O STF (Supremo Tribunal Federal), no ARE 1.532.603/PR (Tema 1.389 da Repercussão Geral), tratou de questões centrais envolvendo a licitude de certas formas alternativas de contratação de pessoas físicas e jurídicas para prestação de serviços.
Ainda que o julgamento tenha origem em contrato de franquia, o STF reconheceu o caráter geral da discussão, com aplicação a várias formas de contratação civil, incluindo médicos, advogados e outros.
As questões centrais em análise
A Suprema Corte reconheceu a existência de repercussão geral em três questões centrais: (i) a competência da Justiça do Trabalho para julgar a existência de fraude em contrato civil de prestação de serviços; (ii) a licitude da contratação civil/comercial de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas, à luz da ADPF 324; e (iii) o ônus da prova em caso de alegada fraude na contratação.
A competência da Justiça do Trabalho
A primeira questão da repercussão geral, de natureza preliminar, diz respeito à competência da Justiça do Trabalho para julgar ações em que se discute a ocorrência de fraude em contratos civis de prestação de serviços.
O relator fez referência ao julgamento da ADC 48, em que o STF reconheceu a natureza comercial dos contratos celebrados por transportadores autônomos de carga, fixando a competência da Justiça Comum para o julgamento das causas envolvendo a aplicação da Lei nº 11.442/2007, bem como a tese fixada no Tema 550 da repercussão geral, que estabeleceu a competência da Justiça Comum para o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes.
Todavia, ante a ausência de jurisprudência consolidada sobre os demais contratos civis de prestação de serviços, a matéria foi submetida ao Plenário.
É importante destacar que a alegação de fraude não pode ser dissociada, a priori, da competência da Justiça do Trabalho. Em muitos casos, empresas induzem pessoas físicas a se tornarem “sócias” de pessoas jurídicas criadas com o único fim de mascarar vínculos empregatícios, visando reduzir encargos, ferindo princípios constitucionais.
A Carta de 1988 apresenta como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), norma que se enquadra como princípio e regra fundamental definidora de direitos e garantias [1]. Tal princípio respalda os direitos sociais fundamentais constantes do artigo 7º da Constituição, que devem ser interpretados com base nos princípios justrabalhistas, dentre os quais se destaca o princípio da proteção.
Esse princípio se desdobra em três regras distintas: o in dubio pro operario, a regra da norma mais favorável e a regra da condição mais benéfica. Soma-se a ele o princípio da primazia da realidade, previsto no art. 112 do Código Civil, segundo o qual a realidade fática prevalece sobre a formalidade, devendo-se atentar para o que ocorre na prática, independente da roupagem jurídica adotada.
Licitude da contratação à luz da ADPF 324
Ingressando na análise do mérito, discute-se, inicialmente, a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou trabalhador pessoa jurídica para prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional das diversas formas de organização do trabalho e da liberdade de estruturação produtiva pelos cidadãos.
Contudo, a pejotização representa, muitas vezes, fraude à relação de emprego, sendo reiteradamente rechaçada pelos Tribunais do Trabalho, embora existam decisões que, após a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), sinalizem a possibilidade de reconhecimento desse tipo de vínculo.
Antes da entrada em vigor da referida reforma, os parâmetros aplicáveis à terceirização de serviços estavam disciplinados pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. O seu inciso I fixou que contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, salvo trabalho temporário, formando-se o vínculo com o tomador dos serviços. Já o inciso III informa que a prestação de serviços que não se enquadram como atividades-fim do tomador não gera vínculo de emprego com o prestador, exceto quando presentes a pessoalidade e a subordinação direta.
Desse modo, o ordenamento juslaboral estabelecia critérios para distinguir a terceirização lícita da ilícita. As hipóteses típicas de terceirização lícita estavam claramente previstas na Súmula 331, como: trabalho temporário, atividades de vigilância, serviços de conservação e limpeza, bem como serviços especializados vinculados à atividade-meio do tomador.
Fora dessas hipóteses expressamente admitidas, inexistia base jurídica que afastasse o reconhecimento da relação empregatícia em contratos por meio dos quais uma pessoa física prestava serviços de forma não eventual, onerosa, pessoal e subordinada a outrem.
Maurício Delgado [2] apresenta a distinção entre atividades-fim e atividades-meio. As primeiras são conceituadas como funções e tarefas vinculadas ao núcleo de atividades da empresa, definitórias da dinâmica empresarial do tomador de serviços. As segundas são tarefas laborais que não se ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial, caracterizando-se como atividades periféricas.
Com a introdução dos artigos 4-A e 5-A à Lei nº 6.019/74, pela Lei nº 13.467/17, torna-se possível a terceirização de todas as atividades da empresa, inclusive sua atividade-fim. Ressalte-se que o STF, em 30/08/2018, aprovou a tese de repercussão geral quanto ao tema 725, no julgamento do RE 958.252, nos seguintes termos: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
No entanto, o §1º do artigo 4º-A da Lei nº 6.019/1974 estabelece que a empresa prestadora de serviços deve dirigir o trabalho executado por seus próprios empregados. Assim, caso o serviço seja prestado com subordinação direta ao contratante, poderá haver caracterização de fraude na relação contratual.
Além disso, exige-se que a empresa contratada possua empregados próprios para a execução das atividades, não sendo admissível que tais atividades sejam desempenhadas diretamente pelos seus “sócios”. Tal exigência decorre do disposto no artigo 4º-C do referido diploma legal.
Igualmente relevante é a verificação da capacidade econômica da empresa, que deve ser compatível com os encargos decorrentes da execução do contrato [3].
Verifica-se que a prática da “pejotização” afronta os requisitos expostos, pois as atividades contratadas são desempenhadas diretamente pelos sócios da pessoa jurídica, a qual, via de regra, não dispõe de capacidade econômica própria e mantém relação de subordinação com o tomador dos serviços.
A flexibilização da terceirização promovida pela reforma trabalhista não legitima a “pejotização”. Ressalte-se, contudo, que a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho entendeu por afastar a obrigatoriedade de um laboratório contratar médicos na qualidade de empregados, com fundamento na Lei da Terceirização (Lei nº 13.429/2017) e na reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017).
No referido julgamento, foi mantido o reconhecimento do vínculo empregatício apenas em relação aos médicos que, antes da vigência das mencionadas leis, prestavam serviços com subordinação direta [4]. Considera-se equivocada tal decisão, por não levar em conta as disposições acima mencionadas e desconsiderar a realidade fática que evidencia a precarização e a insegurança jurídica do vínculo por meio de “pejotização”, o qual encobre uma verdadeira relação de emprego.
A pessoa jurídica contratada deve revelar a posição de empresa, constituída por sócios-empresários, definidos pelo artigo 966 do Código Civil como “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, equiparando-se no plano trabalhista à descrição constante do artigo 2º da CLT, para o qual “considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”.
Dentre as características indiciárias da utilização fraudulenta de pessoa jurídica, aponta-se: utilização de equipamentos, instrumentos, banco de dados pertencentes ao contratante; custos da atividade suportados pelo contratante; os profissionais trabalhados como pessoas jurídicas fornecem apenas mão de obra, recebendo remuneração fixa por horas trabalhadas [5].
Por sua vez, o artigo 442-B da CLT, introduzido pela Lei nº 13.467/2017, dispõe que a contratação de trabalhador autônomo, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a configuração do vínculo empregatício, desde que sejam observadas todas as formalidades legais.
No trabalho autônomo, é o próprio trabalhador quem organiza os fatores de produção necessários à obtenção do resultado, assumindo os riscos inerentes à atividade. Já no trabalho subordinado, o trabalhador integra os fatores de produção organizados pelo empregador, que assume os riscos da atividade econômica e se apropria dos seus resultados [6].
O dispositivo anteriormente mencionado deve ser interpretado em harmonia com o caput do artigo 442 da CLT, que dispõe: “o contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. Dessa forma, o aspecto formal do vínculo não pode ser dissociado de sua dimensão material, de modo que, se o trabalhador autônomo prestar serviços nas condições previstas nos arts. 2º e 3º da CLT — especialmente com subordinação — estará caracterizada a relação de emprego.
Observe-se, ainda, que, nos termos do artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), são considerados nulos todos os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação da legislação trabalhista.
O ônus da prova
A repercussão geral também envolve a questão referente ao ônus da prova, quando da alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante.
O artigo 373 do Código de Processo Civil estabelece a regra geral sobre a distribuição do ônus da prova, indicando que o autor deve provar os fatos constitutivos de seu direito, enquanto o réu deve provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
Há casos em que o legislador altera a regra geral e cria hipóteses excepcionais de distribuição do ônus da prova, o que se convencionou chamar de inversão do ônus da prova. Trata-se de um caso de presunção legal relativa. Nesta situação, a parte que alega o fato está dispensada de prová-lo, cabendo a outra parte o ônus da prova de que o fato não ocorreu [7].
No presente caso, a ponderação do STF é importante para não criar uma prova diabólica, assim considerada aquela cuja produção é impossível ou muito difícil [8].
Ao apreciar o Tema 1389 da Repercussão Geral, não pode o Supremo Tribunal Federal desconsiderar a realidade fática que permeia as relações laborais contemporâneas. Ainda que as transformações tecnológicas tenham impulsionado o surgimento de novas formas de prestação de serviço, não reguladas de maneira específica pelo ordenamento jurídico, permanece inalterado o cenário de vulnerabilidade social de inúmeros trabalhadores, compelidos a se submeter a arranjos contratuais que, embora formalmente travestidos de autonomia, ocultam vínculos empregatícios autênticos. Ignorar esse contexto equivale a legitimar estratégias de precarização que violam os princípios fundantes do Direito do Trabalho e da dignidade da pessoa humana.
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Referências citadas
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 83.
CAMARGO NETO, Rubens Bordinhão. Terceirização ilícita e atuação do Ministério Público do Trabalho em face da “reforma” trabalhista. Brasília: Boletim Científico ESMPU, n. 53, p. 295, jan./jun. 2019
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2016. p. 503.
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVERIA, Rafaeil Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 117.
PORTO, Lorena Vasconcelos, VIEIRA, Paulo Juarês. A Pejotização na reforma trabalhista e violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Curitiba: JusLaboris, jul/2019. p 57. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/162073, Acesso em 24.04.2021, às 19:30 horas.
ROMITA, Arion Sayão. A crise do critério da subordinação jurídica: necessidade de proteção a trabalhadores autônomos subordinados. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, ano 31, n. 117, p. 37-59, jan./mar. 2005.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 83.
[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2016. p. 503.
[3] CAMARGO NETO, Rubens Bordinhão. Terceirização ilícita e atuação do Ministério Público do Trabalho em face da “reforma” trabalhista. Brasília: Boletim Científico ESMPU, n. 53, p. 295, jan./jun. 2019
[4] RR-10287-83.2013.5.01.0011, TST 3ª Turma.
[5] PORTO, Lorena Vasconcelos, VIEIRA, Paulo Juarês. A Pejotização na reforma trabalhista e violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Curitiba: JusLaboris, jul/2019. p 57. Disponível aqui.
[6] ROMITA, Arion Sayão. A crise do critério da subordinação jurídica: necessidade de proteção a trabalhadores autônomos subordinados. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, ano 31, n. 117, p. 37-59, jan./mar. 2005.
[7] DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVERIA, Rafaeil Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 117.
[8] DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVERIA, Rafaeil Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 117.
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