O Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho

O Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho

Publicado em 8 de abril de 2024
Por Douglas Alencar Rodrigues

A garantia constitucional de acesso amplo e efetivo à Justiça passa, necessariamente, pela melhor racionalização do sistema de distribuição de competências entre os órgãos judiciais.

 Em um de seus mais importantes julgamentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a possibilidade excepcional de que suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade de leis fossem “desafiadas” pelos demais poderes do Estado. Aplicou a “Teoria dos Diálogos Institucionais”, ao julgar a ADI 5105, examinando os efeitos da migração de parlamentares em razão da criação de novos partidos, no curso das legislaturas, com consequências sobre o “direito de antena” e o fundo partidário.

Nesse julgamento, o STF reconheceu que novas leis poderiam ser editadas, contrariando suas decisões anteriores, mas ressalvou que tal procedimento dependeria da existência de circunstâncias relevantes de fato ou de direito que não haviam sido consideradas nos julgamentos anteriores.

Além de impor um severo ônus argumentativo ao “poder desafiante”, ressalvando também sua competência para ditar a palavra final sobre o significado da Constituição, o STF afastou a concepção estritamente “juriscêntrica” no campo da hermenêutica constitucional, ampliando significativamente o debate constitucional, que deve ser a tônica em uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.

Esse ideal de construção do sentido da Constituição por meio de debates que não se esgotam com os julgamentos proferidos pelo STF deveria também ser observado para equacionar conflitos interpretativos internos que envolvem os próprios órgãos judiciários.

O recente exemplo do conflito interpretativo que envolve a STF e a Justiça do Trabalho, a propósito dos impactos da reforma trabalhista e dos novos modelos de organização produtiva, tendo a terceirização à frente, é exemplo claro da falta de diálogo interno e de dificuldade recíproca de compreensão.

No sistema judiciário nacional, não se pode negar que a palavra final sobre o significado da ordem constitucional está a cargo da Suprema Corte, assim como não deveria haver dúvida acerca da competência constitucional da Justiça do Trabalho para resolver os conflitos originários de relações de trabalho, e não apenas os decorrentes de contratos de emprego.

Mais recentemente, em julgamento amplamente divulgado pela mídia, o ministro Gilmar Mendes, decano do STF, informou que o volume de “reclamações constitucionais” crescera exponencialmente em temas trabalhistas, o que confirmava a dificuldade de assimilação das decisões do STF pelos magistrados da Justiça especializada. Concebidas como instrumento processual destinado a preservar a competência do tribunal e a autoridade de suas decisões, as reclamações constitucionais tornaram-se a principal via processual utilizada para que a Suprema Corte possa aclarar o significado ou a extensão de seus pronunciamentos obrigatórios e vinculantes.

Longe de pretender justificar o que seria absolutamente injustificável, a existência de uma inusitada “insurreição judicial” contra as decisões supremas, algumas lacunas e contradições são percebidas em alguns julgados, induzindo os magistrados a decisões que parecem afrontar as diretrizes preestabelecidas. Tome-se o exemplo das ressalvas lançadas para os casos em que detectada a fraude nos modelos de contratação autônoma, também referidos como “pejotização”, nos quais o vínculo celetista deveria prevalecer, uma vez que a realidade da vida deveria se sobrepor à ficção das formas. Embora afirmada a fraude em vários julgamentos produzidos pela Justiça do Trabalho, sucessivas decisões de cassação são proferidas pelo STF, deixando-se a impressão de que existe por parte dos juízes um renitente propósito de afrontar a Suprema Corte, a partir da visão monolítica de que a CLT seria a “bíblia adequada e insuperável” para todas as espécies de vínculos jurídicos cujo objeto central seja o trabalho humano.

O advento de novas leis, o avanço tecnológico e as transformações operadas nos modelos de organização produtiva produziram impactos significativos nas relações entre o capital e o trabalho. Esse novo cenário exige dos magistrados um novo modelo de compreensão para essas novas realidades, sobretudo diante das sucessivas manifestações da Suprema Corte, segundo as quais o princípio constitucional da livre iniciativa afasta a imperatividade da legislação trabalhista, legitimando outros modelos ainda que presentes os requisitos formais do contrato de emprego.

Nesse novo ambiente, com a superação da visão “celecêntrica”, pautada na lógica de que o “modelo CLT” seria o único, o mais moderno e o mais eficiente para a proteção social e melhor distribuição dos resultados da atividade econômica, o Judiciário trabalhista deverá assumir novas competências ligadas ao mundo do trabalho e a seus efeitos previdenciários.

A garantia constitucional de acesso amplo e efetivo à Justiça passa, necessariamente, pela melhor racionalização do sistema de distribuição de competências entre os órgãos judiciais, impondo-se a revisão do modelo atual para o melhor aproveitamento dos órgãos da Justiça do Trabalho. Com mais de 80 milhões de processos em curso em todos os ramos do Judiciário, a Justiça do Trabalho, com seus 24 tribunais e 1.587 varas, deveria assumir a solução de todos os conflitos oriundos do mundo do trabalho, inclusive os conflitos previdenciários conexos, pois, como lembra vice-presidente do TST, ministro Aloysio Veiga, “a relação de trabalho não se limita à relação de emprego, já que esta é apenas uma das espécies de relação de trabalho, que se soma a uma série de atuações diversas. E poder decidir sobre todas elas foi a grande conquista da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional 45/2004”.

Fonte: Valor Econômico
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