Reclamação constitucional como mecanismo de garantia dos direitos fundamentais

Reclamação constitucional como mecanismo de garantia dos direitos fundamentais

Publicado em 4 de abril de 2024
Por João Luiz Martins Teixeira Soares e Flavio Barros Braga Juanes

No âmbito da jurisdição constitucional, compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição e assegurar a observância dos direitos fundamentais. Tanto assim o é, que a Constituição consagrou a existência da reclamação constitucional, julgada de forma originária pelo Supremo Tribunal Federal, para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões (Constituição, artigo 102, I, ‘i’).

Na legislação infraconstitucional, a reclamação encontra-se prevista no artigo 988 e seguintes do Código de Processo Civil, sendo cabível para preservar a competência do tribunal e garantir a autoridade das decisões do tribunal e a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, sendo proposta perante qualquer tribunal. Seu julgamento compete ao órgão jurisdicional, cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.

Competindo ao Supremo, em seu papel de jurisdição constitucional, a salvaguarda dos direitos fundamentais, a reclamação constitucional mostra-se como garantia processual apta a resguardar a inafastabilidade da jurisdição e garantir a observância dos julgados da corte constitucional.

No caso envolvendo a Reclamação nº 43.007, apresentada pelo atual chefe do executivo, foi utilizada tanto para garantir a autoridade das decisões do STF, quanto para garantir a observância de enunciado de súmula vinculante. Isto porque havia decisão judicial da própria corte constitucional garantindo ao reclamante acesso aos elementos de prova que lhe dissessem respeito nos autos da ação penal e acordo de leniência mencionados acima, sendo, pois, decisão do tribunal cuja autoridade deveria ser observada (Código de Processo Civil, artigo 988, II).

Na mesma esteira, as decisões judiciais impugnadas pela via da reclamação confrontavam com a Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal, intrinsicamente ligada ao direito de ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, bem como à paridade de armas no processo penal (Constituição, artigo 5º, incisos LIII, LIV, LV e LVI), sendo cabível a reclamação constitucional para garantir de observância do respectivo enunciado (Código de Processo Civil, artigo 988, III).

Observa-se, assim, que a reclamação constitucional dirigida ao Supremo é mecanismo processual que assegura a observância da autoridade da corte constitucional, permitindo a salvaguarda eficiente e em tempo hábil de direitos fundamentais reconhecidos em súmulas vinculantes ou de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, assim como de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência, ressalvada a necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias nos casos de reclamação proposta garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos.

Portanto, na decisão analisada, a reclamação constitucional se mostrou o meio adequado à salvaguarda dos direitos fundamentais do reclamante, sobretudo à ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, com a possibilidade de acesso aos elementos de prova contra ele utilizados e documentados em acordo de leniência, tudo em observância à Súmula Vinculante nº 14.

Hipóteses de cabimento da reclamação e salvaguarda dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais estão presentes na Constituição já no artigo 5º, bem como no artigo 6º e 7º, ou seja, logo no início do texto constitucional já se verifica a presença dos direitos e garantias fundamentais. Isso porque a Constituição busca trazer à tona a importância dos direitos fundamentais.

Ora, os direitos fundamentais correspondem à axiomas que são fundamentais para a realização do ser humano, que se traduzem nas principais normas jurídicas da comunidade [1], é dizer, sem os direitos fundamentais, não há como qualquer ser humano viver de forma digna, tanto que a matriz constitucional legitimadora da existência de direitos considerados como “fundamentais” é o princípio constitucional da “dignidade da pessoa humana”. [2]

Destarte, os direitos fundamentais possuem como funções principais a limitação do poder público e a proteção contra maiorias dispostas a suprimir ou mitigar algum direito fundamental. Diante disso, percebe-se que os direitos fundamentais constituem uma reserva de direitos que não pode ser atingida pelo Estado e nem pelos próprios particulares. [3]

Por meio deste cenário, a reclamação constitucional surge como forma de preservar a competência do Supremo ou, ainda, garantir a autoridade de suas decisões. A Constituição muito bem delimita a competência originária e a competência recursal do STF, sendo que a reclamação constitucional possui como uma das hipóteses de cabimento a garantia de autoridade das decisões em sede de recurso extraordinário, o qual em diversos casos cumpre papel de garantia aos direitos constitucionalmente assegurados, tanto pelo viés material (direitos em espécie) quanto pelo viés recursal (garantias processuais).

Nesse sentido, acerca da importância processual da reclamação, destaca-se:

A reclamação, possivelmente, é o writ constitucional que na última década tem adquirido maior relevância e desenvolvido novas dimensões de funcionalidade. Na realidade, a própria compreensão da atual atuação da jurisdição constitucional está diretamente relacionada com as novas funcionalidades que foram sendo atribuídas à reclamação constitucional. Assim, a reclamação além da função tradicional (cada vez mais relevante) de assegurar a observância do decidido pela jurisdição constitucional, tem se transformado em instrumento imprescindível para o STF ter os meios adequados para lidar com a complexidade contemporânea. Fazemos essa afirmação porque é a reclamação, a principal via, para o STF revisar, calibrar e explicitar temas concernentes aos seus 2 provimentos vinculantes. [4]

Desse modo, a reclamação, ao garantir a autoridade de decisão proferida em sede de recurso extraordinário, acaba, por muitas vezes, exercendo papel de garantia aos direitos fundamentais. Destaca-se ainda que a Emenda 45/2004, ao consagrar as súmulas vinculantes, estabeleceu como mecanismo de processual de proteção ao instituto a reclamação constitucional, estabelecendo que:

“Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”

Assim, a reclamação constitucional assumiu importante papel de também figurar como mecanismo processual de assegurar a observância das súmulas vinculantes que vierem à serem editadas pela Suprema Corte.

Diante disso, em relação à Reclamação 43.007 constata-se, por meio da decisão do ministro Dias Toffoli, que os fundamentos do cabimento da reclamação em comento foi tanto a preservação da competência do STF, quanto a necessidade de observância de súmula vinculante, especificamente a Súmula Vinculante nº 14, a qual tem por escopo garantir o direito do contraditório, trazido no texto constitucional como direito fundamental.

Ora, o direito ao contraditório, além de um direito fundamental de natureza processual, está intimamente ligado ao princípio do devido processo legal, sendo, a reclamação, também meio hábil de se garantir o respeito a tal princípio constitucional.

Direitos fundamentais resguardados por meio da Recl 43.007

A Reclamação Constitucional nº 43.007 objetivou resguardar o direito de ampla defesa ao contraditório e ao devido processo legal, bem como a paridade de armas no processo penal e a imparcialidade judicial (Constituição, artigo 5º, incisos LIII, LIV, LV e LVI).

Estabelece a Súmula Vinculante nº 14 que é direito do defensor, no interesse de seu representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Esta súmula vinculante é reflexo nítido do direito à ampla defesa e ao contraditório, constitucionalmente garantidos e cuja observância no âmbito do processo penal deve ser rigorosa e mais estrita possível. Com efeito, tratando-se do cerceamento de direitos fundamentais, notadamente a liberdade, o processo penal deve ter viés de garantias ao acusado sob a égide de um Estado democrático de Direito.

O direito de defesa, incluída especialmente a defesa técnica, deve abranger o direito de informação, de manifestação e de ver os seus argumentos considerados [5], razão pela qual para o pleno exercício do direito de defesa é necessário o irrestrito acesso aos autos pelo defensor, sob pena do processo penal se tornar inquisitorial [6]

Neste ponto, surge um dos mais relevantes pontos tratados na reclamação, qual seja, o dever de “full disclosure”, ligado, além da ampla defesa, à paridade de armas no processo penal. O “full disclosure” envolve o dever de transparência entre as partes, fruto da lealdade processual, sendo obrigação imposta às partes de explicitar as provas que pretendem utilizar umas contra as outras.

Logo, a concessão de ordem judicial permitindo acesso da defesa aos elementos de prova e demais dados constantes do Acordo de Leniência 5020175- 34.2017.4.04.7000 que façam referência ao reclamante ou que lhe digam respeito, como concedido pelo ministro Ricardo Lewandowski, é importante mecanismo de assegurar a ampla defesa, o contraditório, a paridade de armas no processo penal, tudo relacionado ao dever de “full disclosure” entre as partes.

Por fim, o enfrentamento da questão sobre a imprestabilidade desses elementos de prova, os quais foram concedidos acesso ao requerente Luiz Inácio Lula da Silva, em virtude da possível violação à imparcialidade judicial, decorrente do devido processo legal, é igualmente relevante, tanto sob a ótica dos direitos fundamentais, quanto aos direitos humanos, vez que a imparcialidade judicial é garantia judicial reconhecida em sede de tratados internacionais. [7]

Possíveis efeitos da decisão na reclamação

De início, cumpre destacar que a decisão em uma reclamação constitucional visa à cassação ou à avocação dos autos para a observância da competência ou a autoridade de decisão do Tribunal, sendo assim, não necessária a decisão emanada de uma reclamação provoca a anulação ou reforma da decisão exorbitante, mesmo porque, a reclamação não possui viés recursal.

Assim aconteceu com a decisão do ministro Dias Toffoli na Reclamação 43.007, a qual não anulou ou reformou qualquer decisão, mas declarou a imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do Acordo de Leniência 5020175-34.2017.4.04.7000, celebrado pela Odebrecht, e dos sistemas Drousys e My Web Day B, bem assim de todos os demais elementos que dele decorrem em qualquer âmbito ou grau de jurisdição.

Destaca-se ainda que foi conferido efeito erga omnes para a r. decisão em comento, ou seja, aplicável não apenas ao caso do reclamante, mas sim de todos aqueles que, de alguma forma, restaram prejudicados pelas provas obtidas a partir do acordo de leniência supramencionado.

Tal decisão pode ser vista como importante por tratar de um assunto que delicado e sensível, além de abrir um precedente mais sensível ainda, haja vista que, a partir dessa decisão, outros acordos de leniência podem acabar sendo objeto de novas reclamações [8], devendo cada acordo ser analisado criteriosamente e, caso haja indícios de desrespeito à súmula vinculante, direitos fundamentais ou, ainda, da competência do Supremo, devem ser os elementos probatórios declarados imprestáveis, assim como ocorreu na reclamação em análise.

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Referências bibliográficas

ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021

ARBEX, Thaís; Agostini Renata; Decisão de Toffoli abre brecha para anular acordos de leniência da Odebrecht no Brasil e no exterior, CNN BRASIL, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/decisao-de-toffoli-abre-brecha-para-anular-acordos-de-leniencia-da-odebrecht-no-brasil-e-no-exterior/

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática [Pensamento Humano] Editora Vozes. Edição do Kindle.

MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar Ferreira; Mandado de segurança e ações constitucionais. – 39. ed. – São Paulo: Malheiros, 2022.

MENDES, Gilmar. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2017.

NERY JUNIOR, Nelson. Direito constitucional brasileiro: Curso Completo. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional. – 3. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022.


[1]  ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 41.

[2] ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 41: a Constituição de 1988 trata apropriadamente da dignidade não como direito fundamental, mas como um dos fundamentos do Estado Democrático de direito em que se estabelece a República Federativa do Brasil (CR, art. 1º, III). Então, a dignidade é pressuposto de todo direito fundamental, não sendo correto ‘medir’ algum direito fundamental com a dignidade da pessoa humana (pois então a dignidade tenderia a sobrepor-se sempre), mas aferir a intensidade de impacto de qualquer direito fundamental em relação à dignidade, que funciona, assim, como uma espécie de ‘medida’ dos direitos fundamentais.

[3] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, p. 952.

[4] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, p. 1025.

[5] Mendes; Branco, 2017, p. 464

[6] Mendes; Branco, 2017, p. 466.

[7] Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, artigo 8, item 1.

[8] ARBEX, Thaís; Agostini Renata; Decisão de Toffoli abre brecha para anular acordos de leniência da Odebrecht no Brasil e no exterior, CNN BRASIL, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/decisao-de-toffoli-abre-brecha-para-anular-acordos-de-leniencia-da-odebrecht-no-brasil-e-no-exterior

Fonte: Consultor Jurídico
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