Salário mínimo unificado completa 40 anos

Salário mínimo unificado completa 40 anos

Publicado em 22 de abril de 2024

O artigo 7º da Constituição Brasileira de 1988 garante: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria da sua condição social: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e as de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

Entretanto, um dos elementos citados no trecho não entrou em vigor apenas depois que a constituição foi promulgada. O salário mínimo foi unificado em decreto no dia 26 de abril de 1984, mas passou a ter o mesmo valor em todas as regiões do Brasil no dia 1º de maio do mesmo ano, uma data tradicional para a classe trabalhadora. Inicialmente, o decreto estipulou em 97,176 mil cruzeiros o valor mínimo da remuneração de todos os empregados do país.

De lá para cá, economistas apontam a sua importância para o desenvolvimento econômico do País, a sua relação direta com a inflação, com o cenário político da época e com o bem-estar do trabalhador e sua família. O salário mínimo é objeto constante de estudo por parte do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). No Rio Grande do Sul, uma das responsáveis por análises e trabalhos feitos pela entidade sobre o salário mínimo é a economista Daniela Sandi.

Ela aponta que a luta, tanto pela unificação quanto por um valor adequado, ocorreu no final da década de 1970, através de movimentos sociais e sindicais. Além disso, a medida de 1984, validada pela Constituição quatro anos depois, era válida para todos os empregados com 16 anos ou mais, inclusive assalariados rurais e domésticos.

O economista e professor José Antônio Ribeiro de Moura, da Universidade Feevale, aponta que, além das mudanças econômicas e políticas vividas no país à época, a unificação ocorreu pelo sentimento de unidade na federação. “Na década de 1960, por exemplo, a gente tinha uma política onde o piso não tinha ganhos reais. Quando chegou nos anos 1980, os salários mínimos regionais estavam mais próximos, pois existiam preocupações dentro da economia, como a inflação. Nessa época, o reajuste era sempre abaixo do aumento real, pois a inflação andava sempre na frente de qualquer aumento do salário mínimo. Isso só começa a ser controlado em 1994”, citou.

Reflexos da unificação na economia brasileira

Gustavo Moraes é economista e professor da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Ele reforça que o principal reflexo da unificação ocorreu nas famílias que dependem do salário mínimo para o seu sustento. “Em primeiro lugar, o mercado de trabalho, à época e até hoje, infelizmente é pouco qualificado. A maior parte dos trabalhadores não tem um preparo adequado para o mercado. Em segundo lugar, muitos pensionistas também dependem dele, tanto quem contribuiu ao longo da vida como quem recebe através de assistência social. Por isso, o salário mínimo é uma variável muito relevante no orçamento de milhões de famílias carentes no Brasil”, ressaltou.

Moraes conta ainda que, em 1984, ano da unificação, os trabalhadores sofriam com perdas de valor constantes, com o salário mínimo precisando ser reajustado a cada seis meses. “Por isso, não foi percebida uma mudança significativa no início. Só com a estabilização da economia, em 1994, com o fim da inflação, que o efeito da unificação começa a ser percebido no bolso do brasileiro”, completou o professor.

Ele indica ainda que os trabalhadores das regiões mais ricas do Brasil, como é o caso do Sul e do Sudeste, tiveram pouca diferença prática do que já ocorria durante a vigência dos mínimos regionais. Por outro lado, quem trabalhava em regiões mais pobres teve reajustes consideráveis após a unificação. “Atualmente, caso fôssemos retomar o salário mínimo regional, teríamos um piso mais baixo nas regiões Norte e Nordeste do que no Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Falando apenas da Previdência, teríamos uma pressão menor sobre as contas do governo. Mas, por outro lado, a gente teria uma situação de carência familiar nas regiões mais pobres, que poderia amplificar a desigualdade regional do país”, contou.

Este peso na previdência é um exemplo prático dos reflexos do salário mínimo na economia e no orçamento. Recentemente, foi anunciado que o governo encaminhou o Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025 prevendo um reajuste de 6,39%, com o valor da remuneração mínima aumentando para R$1.502 a partir do próximo ano. Segundo o Ministério do Planejamento, cada R$ 1 de aumento no salário mínimo tem impacto de aproximadamente R$ 370 milhões no orçamento da União.

Já na iniciativa privada, o economista entende que a unificação acabou causando um impacto negativo para as regiões mais pobres. Para Moraes, Norte e Nordeste já não possuíam tanta relevância do ponto de vista industrial dentro do contexto nacional, por isso a unificação teria “barrado” a instalação de novas empresas ou um processo de industrialização massivo das regiões.

“Essa porta acabou sendo fechada, pois você tem uma mão de obra menos qualificada em média. No ponto de vista do salário mínimo, significa para a empresa pagar um salário maior por uma mão de obra menos qualificada. Essa questão da industrialização acabou sendo trabalhada pelos estados de outra forma, através de subsídios governamentais, como no Ceará, que se destaca nessa estratégia. Mas nas outras regiões, na prática, não teve muita alteração”, pontuou.

Já Daniela Sandi aponta ainda que a unificação e o aumento do salário mínimo foram fatores que contribuíram para a iniciativa privada por movimentarem o mercado de consumo. “Qual empresa vai produzir se não há a expectativa de vender seu produto? Sem melhorias no mercado de trabalho, não há perspectiva de aumento de demanda agregada da economia. Aumentos salariais produzem forte impacto sobre o mercado de consumo, pois os trabalhadores tendem a gastar o que ganham”, falou a economista.

Unificação aconteceu na Era Vargas

A criação do salário mínimo, em moldes parecidos com o que conhecemos hoje, ocorreu durante a Era Vargas. A economista Daniela Sandi conta que, apesar de ser instituído concretamente em um decreto-lei de 1º de maio de 1940, legislações e regulamentações anteriores já tratavam sobre o tema no Brasil.

Segundo a economista, o conceito de salário mínimo já estava presente na Constituição de 1934, que estabelecia os itens de despesas que ele deveria atender, como alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte. Em 1936, uma lei estabelecia os procedimentos que seriam utilizados para determinar o valor do salário mínimo no Brasil. Essa legislação foi regulamentada em 1938, com a publicação de um decreto.

A grande diferença do salário mínimo desde que foi instituído para o utilizado atualmente é o estabelecimento de valores regionais. Ao todo, a partir de 1940, o País foi dividido em 50 regiões, cada uma com suas respectivas percentagens para os custos de vida. “Como os valores de algumas regiões coincidem, na prática foram implantados 14 salários mínimos regionais no Brasil em 1940”, apontou Daniela Sandi.

O professor José Antônio Ribeiro de Moura recorda ainda que o cenário avançou ao longo dos anos, mas que ainda haviam diferenças dentro de uma só nação. “Nos anos 1970, a gente ainda tinha 38 tabelas de salário mínimo que foram reduzidas para cinco em 1974. Esse foi um dos gatilhos para que houvesse a unificação nos anos 1980”, recordou.

Desde que a unificação entrou em vigor, Daniela resume que houve uma corrosão do valor nos primeiros até a implantação do Plano Real em 1994 e uma recuperação gradual deste então. Entretanto, as perdas já eram contrastantes. “Entre 1996 e 2002, os reajustes não se basearam em critérios objetivos. Nesse período, o valor real foi reduzido para apenas 30% do valor em julho de 1940. A evolução entre março de 2002 e janeiro de 2019 mostra que o poder aquisitivo teve um aumento de 78,61%”, completou.

Dieese aponta defasagem no valor do salário mínimo

Entre os estudos realizados mensalmente pelo Dieese, está o cálculo do salário mínimo necessário para o trabalhador no determinado período. O apontamento considera para o estudo o custo de vida e o quanto seria suficiente para suprir as despesas de uma família de quatro pessoas por residência, sendo dois adultos e duas crianças. No último cálculo realizado, o Dieese apontou que o salário mínimo necessário seria de R$ 6.832,20, ou seja, 4,84 vezes maior que os atuais R$ 1.412,00.

“Precisamos resolver a questão distributiva. Nesse sentido, é fundamental a recuperação da renda. Considerando as imensas desigualdades e a pobreza que, infelizmente, ainda caracterizam a sociedade brasileira, o debate e a luta por uma política consistente, permanente e sustentável de recuperação de seu poder de compra constitui um dos pilares da política social no país”, prosseguiu a economista do Dieese.

Segundo ela, o salário mínimo serve de referência para cerca de 60 milhões de brasileiros, entre assalariados, aposentados, pensionistas, trabalhadores domésticos e autônomos. “O aumento real ameniza ao trazer uma melhora do poder de compra, garantindo acesso a itens básicos como a alimentação. A inflação não é um fenômeno neutro. Há perdedores e ganhadores e o governo, através de suas ações e escolhas politicas para enfrentar o problema, decide quem vai ganhar ou vai perder. Por isso é vital a retomada da politica de valorização do salário mínimo”, destacou.

Por outro lado, o economista e professor da PUCRS Gustavo Moraes aponta que o estudo apresenta problemas metodológicos se considerados no atual contexto de sociedade. Ele cita que a condição familiar utilizada para embasar o cálculo está cada vez menos frequente no Brasil. “Nós temos um envelhecimento da população. Nós temos famílias que reduziram, algumas com filhos únicos. Hoje a média de habitantes por domicílio é melhor. Esse número é praticamente o orçamento de classe média alta. Acredito que existe uma desatualização do conceito para o cálculo”, ressaltou o professor.

Ele novamente aponta que a falta de qualificação do trabalhador brasileiro é um dos motivos que impede que o salário mínimo chegue a este número de R$ 6.832,20 na prática. “Mas isso não é culpa do trabalhador. É culpa de um modelo de ensino que não o prepara para o mercado de trabalho. Trocando em miúdos, o trabalhador brasileiro tem sido pouco produtivo para entregar um salário de R$ 1,4 mil”, citou.

Especialistas debatem retorno do mínimo regional

A unificação do valor do salário mínimo, em 1984, levou ao fim a regionalização da remuneração. Entretanto, o debate sobre esse tema não encerrou. Questões sociais, econômicas e culturais de cada canto do Brasil voltam a acender o debate sobre possibilidade de retorno do salário mínimo regional. O economista e professor da Feevale José Antônio Ribeiro de Moura entende que o valor definido pela União é o salário de referência, mas que os estados possuem autonomia para criarem seus mínimos regionais, contanto que estes não sejam menores que o nacional.

“Como estamos dentro de um mesmo País, o governo federal estabelece o um salário mínimo em todo o país. Na minha visão, eu opto pela questão federal mesmo, pois somos um país único. Regionalmente, cada governador pode discutir e estabelecer seu próprio mínimo a partir de diferenças de consumo. Também acho que isso pode ser conversado em âmbito regional, por blocos. Mas não pode haver um salário mínimo menor em determinado lugar por conta do desenvolvimento econômico ou porque não se pode pagar tanto. O país tem uma lei soberana e todos somos iguais”, pontuou.

O mínimo estadual citado por Moura está previsto em lei desde 2000, autorizando os estados a instituírem um “piso proporcional à extensão e complexidade do trabalho” nestas unidades. Por outro lado, o economista e professor da PUCRS, Gustavo Moraes, considera que o salário mínimo nacional unificado pode ser tornar uma barreira para o ingresso de milhares de trabalhadores com baixa qualificação no mercado de trabalho formal em algumas regiões do país. “Entendo que é uma discussão válida considerando a realidade do centro-norte do Brasil. Nestes locais, o salário mínimo pode ser uma barreira para o ingresso no mercado formal”, relatou.

Para ele, um trabalhador com baixa qualificação profissional deseja ter sua carteira assinada, mas quem não possui uma produção suficiente para gerar os R$ 1,4 mil, pode ficar de fora do mercado de trabalho. “Isso dificulta um dos gargalos primordiais da Previdência que é a geração de emprego. Por isso, acho válida a discussão da volta dos mínimos regionais. Acredito que conseguiríamos inclusive formalizar um número maior de trabalhadores em algumas regiões. Tudo isso conforme o retrato da qualificação destes trabalhadores”, completou.

Moraes exemplificou seu posicionamento citando os indicadores sociais, educacionais e do mercado de trabalho de estados como o Piauí se comparado com os de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, unidades da federação localizadas em regiões mais ricas, segundo eles. “Eu acredito que o próprio trabalhador estaria disposto a baixar o salário mínimo para formalizar o seu emprego. E eu não digo isso culpando o trabalhador, mas fazendo uma crítica ao sistema de ensino e o preparo deste profissional para ingressar no mercado de trabalho. Na história do salário mínimo, a gente teve oscilações entre ganhos e perdas reais. E discussão sobre o mínimo regional sempre retorna quando temos ganhos reais”, finalizou.

Já a economista do Dieese, Daniela Sandi, aponta que os salários mínimos estaduais permitiriam uma melhor adequação à capacidade econômica que existem entre as unidades da federação. Ela cita como exemplo desta diferença no poder de compra os valores das cestas básicas de Aracaju, que custava R$ 555,22 em março deste ano, e a de Porto Alegre, por R$ 777,43 no mesmo período. Entretanto, ela afirma ser contrária à redução do piso em determinadas regiões.

“O piso estadual foi instituído levando em conta as diferenças de custo de vida no país e estabelecer limites da atuação, que pode ser predatória por parte das empresas empurrando os salários abaixo do tolerável. A valorização do mínimo regional significa um poderoso instrumento de democratização da renda. O mito de manter a competitividade com a redução do piso regional é fruto de uma abstração presumida da autorregulação dos mercados e não se sustenta. O mercado é promotor de desequilíbrios e desigualdades”, contrapôs a economista.

Fonte: Correio do Povo
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